Meu Querido Armário, Minha Amada Cama, Minha
Inesquecível EPCAR
Jober Rocha
Todos aqueles que estudaram em escolas militares, com
certeza, lembrar-se-ão com saudades do seu velho armário e da
sua velha cama naquelas organizações militares. Únicos bens
duráveis de que dispunham, substituíam o armário e a cama que
possuíam em casa e constituíam o refúgio de todos, quando, com
saudades dos familiares, neles se refugiavam para contemplar
algumas fotos, esquecer as agruras do dia a dia e lembrar-se dos
entes queridos.
Na Escola Preparatória de Cadetes do Ar, localizada em
Barbacena, Minas Gerais, os cerca de setecentos e cinqüenta
alunos matriculados nos três anos do ensino - correspondentes ao
denominado Curso Científico, existente naqueles idos da década
de 1960 – dispunham, cada um, de um armário e de uma cama. As
vezes a cama estava situada próxima do armário, outras vezes
distante.
Os armários, de madeira, possuíam cerca de um metro e
oitenta de altura, por sessenta centímetros de largura e cinqüenta
de profundidade e um número localizado em cima da porta. Nele
teriam de caber todas as posses dos alunos, que eram
relativamente poucas, mas absolutamente muitas. Embora todos
fossem completamente honestos e de boa formação cívica e
moral, os armários eram mantidos fechados com cadeados, às
vezes com mais de um.
Dentro deles, não havia gavetas, mas, sim, prateleiras, onde
os uniformes militares, e as roupas civis deveriam ficar todas bem
arrumadas. A arrumação era fundamental para que coubesse tudo
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em tão reduzido espaço. Na prateleira de cima (primeira
prateleira) costumavam ficar os quepes, os bicos de pato (bonés),
os bibicos (casquetes), as platinas (ombreiras) e o capacete de
fibra. Na prateleira de baixo (segunda, que era maior do que as
demais), ficavam pendurados, em um travessão, o uniforme de
passeio (Quinto A Rumaer), a japona, a pelerine, o terno civil,
algum casaco civil, camisas civis e camisas de manga comprida
usadas com o quinto uniforme. Na terceira prateleira ficavam as
camisas militares de manga curta (canículas), as camisetas sem
mangas de ginástica, os calções de ginástica e as sungas de
natação. Na quarta ficavam as meias, as cuecas, a bleusa, a
ceroula, toalha de banho e de rosto, bem como os pijamas. Na
quinta e última prateleira ficavam as sapatilhas de ginástica, os
borzeguins, o bute, o sapato preto do quinto uniforme e o sapato
de uso civil.
Na porta dos armários existiam dois ou três compartimentos
onde eram guardadas as escovas de dente, a pasta, o sabonete, o
papel higiênico, a graxa de sapatos e a escova de polir, as insígnias
e a latinha de Kaol (polidor de fivelas). Na porta existia, também,
um local para pendurar os cintos, cinturões e gravatas pretas do
quinto uniforme.
Basicamente, nisto tudo se constituía oficialmente o armário
de um aluno. Entretanto extra-oficialmente, os armários
comportavam alguns outros itens: armas de fogo, armas branca,
fotos de familiares, de namoradas, fotos de mulheres nuas,
camisinhas, maços de cigarro, talheres e canecas de aço
surripiados do rancho, latas de doce recebidas de casa e enviadas
pelas mães, pacotes de biscoito, cartas de parentes e namoradas,
etc.
Alguns veteranos possuíam dois ou, até mesmo, três
armários. Os alunos que desligados ou que pediam seu
desligamento durante o ano letivo, eram obrigados a desocupar os
armários e entregá-los de volta. Estes, logo em seguida, seriam
ocupados por alguns veteranos mais espertos que retiravam suas
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prateleiras e os utilizavam como esconderijo para não irem à
parada diária do meio-dia, antes do almoço. Terminada as aulas da
manhã, tais alunos dirigiam-se ao alojamento, onde se escondiam
nos armários vazios, para não irem à parada diária de passagem do
serviço de aluno de dia e de seus auxiliares. Finda a parada,
quando todos se dirigiam para o rancho (refeitório) eles saiam,
sorrateiramente, do armário e se incorporavam àqueles que para
lá se dirigiam. Uma vez ou outra, alguns deles eram apanhados
nesta infração e ficavam de licenciamento sustado (sábado e
domingo sem poder ir à cidade de Barbacena). Nos casos de
reincidência, podiam pegar alguns dias de detenção na escola ou,
mesmo, alguns dias de prisão.
As camas que os alunos possuíam (a sua maioria de madeira;
porém, também, havendo alguns beliches de metal, com lonas
amarradas em travessões de ferro, servindo de colchão), deveriam
ser impecavelmente arrumadas todas as manhãs. Um lençol
colocado sobre o colchão, um cobertor sobre o lençol, uma colcha
sobre o cobertor e outro cobertor, arrumado aos pés da cama,
formando o desenho de uma aza. A revista de camas feita pelo
aluno de dia, anotava aquelas mal arrumadas para uma eventual
punição.
Naquelas camas sonhávamos, logo após o toque do silêncio,
com nossas namoradas, com nosso futuro na Força Aérea, com
nossas mães, pais e irmãos. Daquelas camas teimávamos em sair
nos dias frios de inverno. Naquelas camas vomitávamos nos
sábados e domingos, quando, tendo bebido muito nos bares da
cidade, chegávamos bêbados à escola e desabávamos na cama
para, em seguida, vomitar as tripas e sermos levados pelos
companheiros para um banho frio no banheiro, de modo a curar a
bebedeira. Naquelas camas ressonávamos, sob os olhares atentos
do plantão da hora; que, em algumas ocasiões, também ressonava
junto conosco.
Aquela era a nossa nova casa, onde tínhamos tudo de que
precisávamos como jovens: um armário, uma cama, uma
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namorada e dezenas de amigos. Quem dera que a nossa vida
continuasse sempre assim, sem sofrimentos, sem mortes, sem
desilusões, sem traições, sem desavenças. Quem dera que
continuássemos, para sempre, acreditando nos valores que ali
aprendemos e passamos a cultuar, após deixarmos aquela querida
escola palco de tanta brincadeira, de tanto sacrifício e de tanta
felicidade.
Infelizmente, quantos tiveram a existência abreviada, tão
logo deixaram a Epcar, seja desempenhando missões como
militares ou em suas atividades na vida civil. Entretanto, resta-nos
o consolo de saber que não convivemos todos juntos, no período
mais importante de nossas vidas, por um simples e desarrazoado
acaso; pois este, segundo filósofos e religiosos, não existe. As
amizades, ali surgidas e consolidadas, serão certamente eternas.
Nossos espíritos se reconhecerão para sempre, seja quando
encarnados em outra existência (como crêem os espíritas), seja
ainda na dimensão etérea (como crêem as demais religiões).
Estou convencido de que meus sentimentos são
comungados por todos aqueles que passaram pela Escola
Preparatória de Cadetes do Ar, mesmo que por apenas alguns
meses; bem como, por qualquer aluno de escola militar, seja em
que país do mundo for.
Ao relembrar aqueles tempos de incrível felicidade, em que
o mundo nos pertencia, quando ainda desconhecíamos o que o
destino nos reservava e contávamos com nossos pais, mães e
irmãos ao nosso lado, sou tomado pela emoção e, com lágrimas
nos olhos, agradeço ao Criador a graça que me proporcionou de
ter vivido a vida que vivi...
Rio de Janeiro, novembro de 2014
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