terça-feira, 19 de novembro de 2013
É UM PÁSSARO? UM AVIÃO? NÃO, É O 'SUPERJUIZ'!
Por José Miguel Garcia Medina
Tomemos a sério o projeto de novo Código de Processo Civil.
Se, de um lado, é evidente que uma nova lei processual não resolverá todos os problemas da Justiça brasileira, é inaceitável que as discussões em torno do projeto sejam baseadas em retóricas vazias, destituídas de fundamento.
O título do texto da coluna de hoje é uma provocação: alguns afirmam que o projeto de novo CPC cria “superjuízes” com “superpoderes”.
Diz-se que, pelo projeto, se permitiria que os juízes concedessem liminares de antecipação de tutela e cautelares. Seria possível, ainda, a execução de decisões proferidas pelo juiz de primeiro grau, sem que coubesse recurso... Absurdamente, o projeto permitiria o arresto de bens do devedor!
Voltemos os olhos, por um instante, ao Código em vigor. A possibilidade de concessão de liminares cautelares, antes de ouvido o réu, existe desde 1973 (cf. artigo 804 do CPC).[1] A reforma que deu nova conformação à antecipação dos efeitos da tutela, por sua vez, é de 1994.[2] A possibilidade de concessão de arresto, liminarmente, não é criação do projeto hoje em trâmite no Congresso Nacional: todos conhecem a medida prevista nos artigos 813 e seguintes do Código em vigor.[3]
A decisão que concede liminar antecipando efeitos da tutela, por sua vez, pode ser executada de imediato: o recurso cabível, no caso, não tem efeito suspensivo automático (cf. artigos 273, parágrafo 3º, e 558 do CPC). Essa é a disciplina prevista no Código em vigor, a respeito. Nota-se aí, de todo modo, uma incoerência: a decisão que concede liminar — fundada, portanto, em cognição sumária — pode ser executada liminarmente, enquanto a sentença condenatória sujeita-se a recurso que, como regra, deve ser recebido com efeito suspensivo (CPC, art. 520), impedindo sua execução imediata. O Código em vigor, assim, permite a execução imediata de uma liminar fundada em cognição sumária, mas não a execução de sentença fundada em cognição exauriente...
Por falar em “superpoderes”, que dizer do parágrafo 5º do artigo 461 do Código em vigor? No caso, não é a lei, mas o magistrado quem define quais as medidas executivas e o modo de sua realização.
A ampliação dos poderes de decisão do magistrado não decorreu apenas de reformas processuais (os artigos 273 e 461 do Código, a meu ver, são os mais expressivos nesse sentido). A sociedade, cada vez mais complexa, muda muito rapidamente, e os dispositivos de direito material valem-se, cada vez mais, de cláusulas gerais, conceitos vagos e indeterminados. Tudo isso acaba impondo uma maior participação do magistrado na construção da solução jurídica. E temos, ainda, todos os problemas que envolvem as decisões judiciais fundadas em princípios jurídicos.
O projeto de novo CPC, assim, deve ocupar-se de dar os contornos da atuação jurisdicional, nesse contexto (isso é, nesse contexto social, à luz de disposições de direito material dessa natureza).
Embora tenha participado da comissão que elaborou o anteprojeto, tenho minhas críticas ao projeto de novo CPC. Boa parte delas, inclusive, tenho suscitado nos textos da coluna Processo Novo.
É preciso humildade, contudo, ao discutir um projeto de lei de tamanha importância. Há dispositivos com os quais não concordo e, creio, devem ser corrigidos, ainda durante a tramitação do projeto no Congresso Nacional. Mas um Código não deve refletir a opinião de um jurista; um Código deve conter as ideias principais de uma comunidade, ajustadas à sua realidade e ao seu tempo. E isso o projeto contém, sem dúvida.
É inaceitável, assim, que as discussões relacionadas ao projeto se restrinjam a dois ou três dispositivos que, isoladamente, não refletem a principiologia do Código proposto.
Se há algo contra o que o projeto de propõe a lutar é justamente contra o arbítrio e o subjetivismo na construção das decisões judiciais. O artigo 499, parágrafo 1º, do projeto dá novo tratamento do dever de fundamentação das decisões judiciais. Há, por exemplo, exigência de minuciosa fundamentação quando a decisão é fundada em princípios jurídicos. O artigo 520 do projeto, por sua vez, preocupa-se com a concretização de uma jurisprudência íntegra. Além disso, o projeto contém um sem número de disposições contrárias à jurisprudência defensiva, e que tornam o procedimento mais simples. O projeto retrata, ao longo de suas disposições, um ajuste da lei processual às garantias mínimas do processo, decorrentes do devido processo legal.
O projeto não cria um “superjuiz” com “superpoderes”. Se a arbitrariedade e o subjetivismo são as marcas da atuação de um “superjuiz”, ele já está entre nós, e só o desconhecimento da realidade permite dizer que isso seria decorrência do projeto de novo CPC. O projeto não esconde, mas revela os problemas que hoje existem no direito processual civil, e se propõe a lutar contra eles.
Há algum tempo, em outro local, fiz observações a respeito da relação entre direito e humildade. Tomo a liberdade de transcrever, aqui, um trecho do que escrevi naquele espaço:
"O ser humano é imperfeito. Por isso - embora não apenas por isso, evidentemente -, temos o Direito. A existência, a necessidade do Direito decorre da imperfeição do ser humano. Fôssemos perfeitos, irrepreensíveis, o Direito poderia ser, até, desnecessário. Isso é algo que aprendemos logo que nos colocamos a estudar o Direito. Aliás, isso vale para o Direito, como vale também para a Bíblia. A Bíblia, ao narrar a história do relacionamento entre Deus e o ser humano, não descreve apenas os feitos, mas também as falhas - às vezes, graves -, de profetas, apóstolos, etc. É certo que há santos referidos na Bíblia, com uma história sem mácula - além dos santos, evidentemente, há Jesus, mas Jesus está em um outro nível, nessa história toda. Aprendemos, com as histórias de Davi e Pedro, por exemplo, que mesmo figuras grandiosas cometem erros. Nem por isso, contudo, desistiram. Sentindo-se amados por Deus, seguiram em frente, pois sabiam que tinham uma meta a cumprir. [...]. Depois que nos descobrimos imperfeitos, vemos quão fracos somos, quão propensos aos erros... Daí, pois, a necessidade do Direito. Os reflexos jurídicos do reconhecimento da imperfeição humana aparecem em todos os cantos. Vejam as regras processuais, por exemplo: confiássemos na infalibilidade dos juízes, certamente as regras relativas à necessidade de fundamentação judicial seriam diferentes - ou sequer existiriam. O Direito é feito em comunidade. Ninguém faz Direito sozinho. A exigência - para mim, um princípio - de que a jurisprudência seja íntegra, também decorre da ideia (ou do humilde reconhecimento) da imperfeição humana: como os juízes não estão sozinhos no mundo - e, evidentemente, não estão sós no mundo jurídico -, devem compreender o que se produz na jurisprudência - do mesmo Tribunal, de orgãos superiores etc. -, seguirem aquilo que se produziu ou, se divergirem, devem indicar os porquês. Ninguém se fez ou se faz sozinho. Devemos muito uns aos outros - ok, talvez esse não seja o seu, mas é o meu caso. O Direito também se faz comunitariamente. Por isso - ou apesar disso - acho estranho quando alguém cria para si uma máscara de perfeição. Aprendi a desconfiar daqueles que vivem a ostentar qualidades (reais?). Exibindo uma falsa perfeição, moralistas de plantão sempre têm algo a esconder. Isso vale para os moralistas, mas também para os juristas/censores de plantão: ninguém sabe tudo. Aqueles que muito estudam sabem que têm muito a aprender. No fundo, somos um monte de gente imperfeita lutando contra nossas imperfeições. Por isso, gosto de pensar que não precisamos ser perfeitos - seríamos um grande fracasso - mas devemos ser íntegros: tentar crescer como seres humanos, tentar melhorar dia a dia, reconhecer os erros e, apesar de nossas imperfeições, continuar lutando, seguindo em frente, aprendendo com a vida, aprendendo uns com os outros. Sejamos humildes, pois - assim na vida, como no Direito."
Creio que esse é o momento em que vivemos. As críticas ao projeto do novo CPC decorrem, em boa medida, de não reconhecermos ou não querermos reconhecer as mazelas do processo civil atual. Assim, afirmar que o projeto de novo CPC cria “superjuízes” é como que uma fuga para não reconhecer os problemas de arbitrariedades e subjetivismos que temos hoje. Mais que tudo, é uma recusa ao reconhecimento de nossos problemas e à tentativa de melhorar o que temos. É, talvez, uma tentativa de manter o status quo.
Tomemos a sério, pois, o projeto de novo Código de Processo Civil. Que o discutamos, mas com seriedade.
[1] O Código de 1939 também previa a possibilidade, em seu artigo 683.
[2] Cf. Lei 8.952/1994, que deu nova redação ao art. 273 do CPC.
[3] No Código de 1939, cf. art. 676, I e 681.
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
Revista Consultor Jurídico, 18 de novembro de 2013
Tomemos a sério o projeto de novo Código de Processo Civil.
Se, de um lado, é evidente que uma nova lei processual não resolverá todos os problemas da Justiça brasileira, é inaceitável que as discussões em torno do projeto sejam baseadas em retóricas vazias, destituídas de fundamento.
O título do texto da coluna de hoje é uma provocação: alguns afirmam que o projeto de novo CPC cria “superjuízes” com “superpoderes”.
Diz-se que, pelo projeto, se permitiria que os juízes concedessem liminares de antecipação de tutela e cautelares. Seria possível, ainda, a execução de decisões proferidas pelo juiz de primeiro grau, sem que coubesse recurso... Absurdamente, o projeto permitiria o arresto de bens do devedor!
Voltemos os olhos, por um instante, ao Código em vigor. A possibilidade de concessão de liminares cautelares, antes de ouvido o réu, existe desde 1973 (cf. artigo 804 do CPC).[1] A reforma que deu nova conformação à antecipação dos efeitos da tutela, por sua vez, é de 1994.[2] A possibilidade de concessão de arresto, liminarmente, não é criação do projeto hoje em trâmite no Congresso Nacional: todos conhecem a medida prevista nos artigos 813 e seguintes do Código em vigor.[3]
A decisão que concede liminar antecipando efeitos da tutela, por sua vez, pode ser executada de imediato: o recurso cabível, no caso, não tem efeito suspensivo automático (cf. artigos 273, parágrafo 3º, e 558 do CPC). Essa é a disciplina prevista no Código em vigor, a respeito. Nota-se aí, de todo modo, uma incoerência: a decisão que concede liminar — fundada, portanto, em cognição sumária — pode ser executada liminarmente, enquanto a sentença condenatória sujeita-se a recurso que, como regra, deve ser recebido com efeito suspensivo (CPC, art. 520), impedindo sua execução imediata. O Código em vigor, assim, permite a execução imediata de uma liminar fundada em cognição sumária, mas não a execução de sentença fundada em cognição exauriente...
Por falar em “superpoderes”, que dizer do parágrafo 5º do artigo 461 do Código em vigor? No caso, não é a lei, mas o magistrado quem define quais as medidas executivas e o modo de sua realização.
A ampliação dos poderes de decisão do magistrado não decorreu apenas de reformas processuais (os artigos 273 e 461 do Código, a meu ver, são os mais expressivos nesse sentido). A sociedade, cada vez mais complexa, muda muito rapidamente, e os dispositivos de direito material valem-se, cada vez mais, de cláusulas gerais, conceitos vagos e indeterminados. Tudo isso acaba impondo uma maior participação do magistrado na construção da solução jurídica. E temos, ainda, todos os problemas que envolvem as decisões judiciais fundadas em princípios jurídicos.
O projeto de novo CPC, assim, deve ocupar-se de dar os contornos da atuação jurisdicional, nesse contexto (isso é, nesse contexto social, à luz de disposições de direito material dessa natureza).
Embora tenha participado da comissão que elaborou o anteprojeto, tenho minhas críticas ao projeto de novo CPC. Boa parte delas, inclusive, tenho suscitado nos textos da coluna Processo Novo.
É preciso humildade, contudo, ao discutir um projeto de lei de tamanha importância. Há dispositivos com os quais não concordo e, creio, devem ser corrigidos, ainda durante a tramitação do projeto no Congresso Nacional. Mas um Código não deve refletir a opinião de um jurista; um Código deve conter as ideias principais de uma comunidade, ajustadas à sua realidade e ao seu tempo. E isso o projeto contém, sem dúvida.
É inaceitável, assim, que as discussões relacionadas ao projeto se restrinjam a dois ou três dispositivos que, isoladamente, não refletem a principiologia do Código proposto.
Se há algo contra o que o projeto de propõe a lutar é justamente contra o arbítrio e o subjetivismo na construção das decisões judiciais. O artigo 499, parágrafo 1º, do projeto dá novo tratamento do dever de fundamentação das decisões judiciais. Há, por exemplo, exigência de minuciosa fundamentação quando a decisão é fundada em princípios jurídicos. O artigo 520 do projeto, por sua vez, preocupa-se com a concretização de uma jurisprudência íntegra. Além disso, o projeto contém um sem número de disposições contrárias à jurisprudência defensiva, e que tornam o procedimento mais simples. O projeto retrata, ao longo de suas disposições, um ajuste da lei processual às garantias mínimas do processo, decorrentes do devido processo legal.
O projeto não cria um “superjuiz” com “superpoderes”. Se a arbitrariedade e o subjetivismo são as marcas da atuação de um “superjuiz”, ele já está entre nós, e só o desconhecimento da realidade permite dizer que isso seria decorrência do projeto de novo CPC. O projeto não esconde, mas revela os problemas que hoje existem no direito processual civil, e se propõe a lutar contra eles.
Há algum tempo, em outro local, fiz observações a respeito da relação entre direito e humildade. Tomo a liberdade de transcrever, aqui, um trecho do que escrevi naquele espaço:
"O ser humano é imperfeito. Por isso - embora não apenas por isso, evidentemente -, temos o Direito. A existência, a necessidade do Direito decorre da imperfeição do ser humano. Fôssemos perfeitos, irrepreensíveis, o Direito poderia ser, até, desnecessário. Isso é algo que aprendemos logo que nos colocamos a estudar o Direito. Aliás, isso vale para o Direito, como vale também para a Bíblia. A Bíblia, ao narrar a história do relacionamento entre Deus e o ser humano, não descreve apenas os feitos, mas também as falhas - às vezes, graves -, de profetas, apóstolos, etc. É certo que há santos referidos na Bíblia, com uma história sem mácula - além dos santos, evidentemente, há Jesus, mas Jesus está em um outro nível, nessa história toda. Aprendemos, com as histórias de Davi e Pedro, por exemplo, que mesmo figuras grandiosas cometem erros. Nem por isso, contudo, desistiram. Sentindo-se amados por Deus, seguiram em frente, pois sabiam que tinham uma meta a cumprir. [...]. Depois que nos descobrimos imperfeitos, vemos quão fracos somos, quão propensos aos erros... Daí, pois, a necessidade do Direito. Os reflexos jurídicos do reconhecimento da imperfeição humana aparecem em todos os cantos. Vejam as regras processuais, por exemplo: confiássemos na infalibilidade dos juízes, certamente as regras relativas à necessidade de fundamentação judicial seriam diferentes - ou sequer existiriam. O Direito é feito em comunidade. Ninguém faz Direito sozinho. A exigência - para mim, um princípio - de que a jurisprudência seja íntegra, também decorre da ideia (ou do humilde reconhecimento) da imperfeição humana: como os juízes não estão sozinhos no mundo - e, evidentemente, não estão sós no mundo jurídico -, devem compreender o que se produz na jurisprudência - do mesmo Tribunal, de orgãos superiores etc. -, seguirem aquilo que se produziu ou, se divergirem, devem indicar os porquês. Ninguém se fez ou se faz sozinho. Devemos muito uns aos outros - ok, talvez esse não seja o seu, mas é o meu caso. O Direito também se faz comunitariamente. Por isso - ou apesar disso - acho estranho quando alguém cria para si uma máscara de perfeição. Aprendi a desconfiar daqueles que vivem a ostentar qualidades (reais?). Exibindo uma falsa perfeição, moralistas de plantão sempre têm algo a esconder. Isso vale para os moralistas, mas também para os juristas/censores de plantão: ninguém sabe tudo. Aqueles que muito estudam sabem que têm muito a aprender. No fundo, somos um monte de gente imperfeita lutando contra nossas imperfeições. Por isso, gosto de pensar que não precisamos ser perfeitos - seríamos um grande fracasso - mas devemos ser íntegros: tentar crescer como seres humanos, tentar melhorar dia a dia, reconhecer os erros e, apesar de nossas imperfeições, continuar lutando, seguindo em frente, aprendendo com a vida, aprendendo uns com os outros. Sejamos humildes, pois - assim na vida, como no Direito."
Creio que esse é o momento em que vivemos. As críticas ao projeto do novo CPC decorrem, em boa medida, de não reconhecermos ou não querermos reconhecer as mazelas do processo civil atual. Assim, afirmar que o projeto de novo CPC cria “superjuízes” é como que uma fuga para não reconhecer os problemas de arbitrariedades e subjetivismos que temos hoje. Mais que tudo, é uma recusa ao reconhecimento de nossos problemas e à tentativa de melhorar o que temos. É, talvez, uma tentativa de manter o status quo.
Tomemos a sério, pois, o projeto de novo Código de Processo Civil. Que o discutamos, mas com seriedade.
[1] O Código de 1939 também previa a possibilidade, em seu artigo 683.
[2] Cf. Lei 8.952/1994, que deu nova redação ao art. 273 do CPC.
[3] No Código de 1939, cf. art. 676, I e 681.
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
Revista Consultor Jurídico, 18 de novembro de 2013
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