UMA NOVA POLÍCIA
Güido – Asp78 Assis (SP)
O
direito à livre manifestação é fundamentalmente um direito à crítica.
Os mais expostos ficam, portanto, mais sujeitos ao ‘olhar’ dos críticos
na exata medida de sua presença amiúde nos fatos sociais mais amplamente
noticiados. Assim, as pessoas e ou instituições que ficam
confortavelmente instaladas em suas respectivas ‘torres de marfim’ ficam
menos suscetíveis.
Nesse
sentido, se existe uma instituição pública que fica permanentemente na
‘vitrine’ é a polícia. Em especial, a polícia fardada, que, por força de
suas atribuições constitucionais, está nas ruas 24h ao dia em contato
direito com as mais diversas mazelas sociais.
Seus integrantes vivem cotidianamente ‘na pele’ os efeitos das políticas
públicas causadoras de uma dos maiores níveis de desigualdade social e
de má distribuição de renda. Se a desagregação familiar evolui, se a
ordem jurídica instituída mostra-se inócua diante da realidade ou, ainda, se os governos são condescendentes e
ou impotentes para lidar com o tráfico de drogas e de armas é a polícia
o órgão público que diretamente sentirá suas consequências. E, em
decorrência, é sobre ela que incidirão as críticas e acusações pela
ineficiência de outros segmentos.
É
o órgão público mais visto, e por tal, segundo a mais elementar lógica
publicitária, o mais lembrado, sobretudo quando o foco é a crítica à má
qualidade dos serviços públicos oferecidos à população. Com efeito, é o
mais cobrado e mais atacado por esse estado de coisas, esquecendo-se os
críticos que, no âmbito específico da criminalidade, a polícia atua sobre os efeitos e não as causas retroalimentadoras da delinquência.
Relativamente
ao contexto mais agudo, este representado pelos crescentes índices
criminais, as outras esferas governamentais ficam silentes, como soe
acontecer. A imprensa sequer os procura ou quando o fazem não são
atendidos. Então sobra a “Geni” para ser objeto de implacáveis análises,
em especial de setores com alguma dose de revanchismo por fatos do
passado que não se cansam de reverberar.
Blindados
por essa ‘zona de conforto’, os segmentos com interface necessária com a
segurança pública, mostram-se indiferentes. É como se não fizessem
parte do sistema. Afinal, aos ‘olhos’ da população e ou da mídia, aos
fatos graves decorrentes do recrudescimento da violência que campeia
indistintamente em todos os rincões do país nada teria a ver com o seu
papel institucional, querem fazer crer.
Observam,
comentam, arriscam-se a uma ou outra análise como alguém que não faz
parte integrante da estrutura oficial coresponsável pela solução e ou
minimização da grave crise de insegurança instalada há alguns anos.
Pensam: o problema não é nosso!
Enfim, a polícia fardada é a que sofre na ‘pele’ com o
‘faz de conta’ governamental. Em regra, os membros dos poderes
constituídos e seus familiares contam com aparato estatal para lhes
prover segurança. Com efeito, distanciam-se dos reais anseios dos cidadãos contribuintes, para muitos dos quais as críticas dirigidas unicamente ao aparato policial como legítimas. Sem perceber, acabam aceitando a ideia de que a polícia é a responsável
exclusiva pela insegurança pública. Graças a esse cenário, as
autoridades políticas com real poder de transformação do quadro adverso
se escondem.
Outro
ponto desconsiderado refere-se ao ambiente e ao momento de atuação da
polícia fardada. Sua presença está sempre associada a fatos graves,
lamentáveis, reveladores da inacreditável capacidade humana de fazer o
mal. Lida ela, portanto, com as situações limites.
Significa dizer que está sempre no ‘fio da navalha’, entre o morrer ou
matar. Está sempre no ‘olho’ do furacão. Ou no epicentro dos
‘terremotos’ sociais.
Entre
matar ou morrer, o policial fardado dispõe não raro de poucos segundos
para decidir qual postura adotar. Mesmo numa ocorrência envolvendo
agressão doméstica é comum deparar-se com o marido absolutamente
transtornado e, por isso, totalmente refratário à ação policial presente
no interior de sua casa.
Bêbado
ou drogado, investe contra os policiais com fúria tal que se não houver
destreza e alto nível de autocontrole ensejaria disparo que poderia ser
letal contra esse potencial agressor. Estatisticamente, contudo, tais
fatos reveladores da contenção no uso dos meios letais nunca integram os
relatórios publicados por algumas entidades observadoras da ação
policial. Chega-se mesmo a duvidar se de fato interessa a tais entidades
pesquisar e compilar tais informações em seus retumbantes relatórios!
Pelo
que é dado observar, o enfoque dessas entidades é, não raro, buscar
dados aptos a confirmar determinadas teses pré-estabelecidas. Supondo
que a polícia fardada matou mais no período comparativamente ao período
anterior cinge-se a compilar os dados publicados pelas próprias polícias
indicando o crescimento da letalidade em suas operações. Como se esses
agentes saíssem às ruas com a predisposição de matar apenas pelo prazer
de matar.
Quando
o policial mata ou fere alguém em serviço sabe de antemão que estará
sujeito a uma série de graves consequências legais. Fatos dessa natureza
o colocam no centro de inúmeras apurações, por distintos órgãos, e,
portanto, submetido ao crivo implacável das sanções correspondentes se a
conduta não for reconhecida como uma das excludentes da criminalidade
pelo Código Penal.
A
veiculação de dados isoladamente considerados revela apenas um cenário.
A partir dele é preciso uma análise multidisciplinar a fim de
identificar o real significado das informações obtidas. Reputar, adrede,
que o aumento da letalidade policial é, por exemplo, sintoma de
despreparo e de uma política oficial de extermínio é no mínimo
açodamento, podendo ainda desnudar preconceito ou engajamento
ideológico.
Curiosamente, por outro lado, não há nenhuma entidade externa pesquisando
como são formados e treinados esses profissionais, a infraestrutura
oferecida pelo poder público para a atualização regular desses agentes
públicos fundamentais à proteção social. Nenhuma entidade cuida,
estranhamente, de promover sondagem sobre a política salarial empregada
pelo poder público para compensar pecuniariamente tamanha exigência de resistência ao estresse e aos riscos profissionais cada vez mais acentuados.
Indaga-se:
qual a entidade já se interessou em conhecer a carga horária de
trabalho que a administração pública impõe aos policiais fardados? Seria
esta carga horária adequada as peculiaridades da atividade? Qual seria a
duração máxima do turno de trabalho que poderia ser exigida desses
profissionais em face do elevado desgaste físico e psicológico que cada
turno de trabalho ocasiona?
Enfim,
inúmeras outras questões relevantes poderiam ser arguidas a fim de
melhor compreender a dinâmica em que tais agentes atuam, porque algumas
coisas acontecem ou não. A análise criteriosa, técnica, politicamente
neutra dessas valiosas informações poderia representar substancial
colaboração social, a partir da qual os governantes seriam pressionados a
rever uma série de posturas contrárias à eficiência do aparato de
proteção pública.
Sobretudo,, porque não podendo o policial fardado rebelar-se contra as
arbitrariedades dos dirigentes políticos de ‘plantão, fica extremamente
vulnerável a toda sorte de desmandos e preconceitos dos próprios
governantes. Pergunta-se: alguém já se interessou de fato por essas e
tantas outras questões relevantes antes de formular juízo de valor sobre
a motivação e as propensões desses agentes estatais típicos?
A
desatenção a essas questões indica que parcela significativa dos ditos
especialistas em segurança pública, quando assumem o seu direito
constitucional de expressar suas opiniões permite afirmar que o fazem
mais por preconceito do que em razão de refletida análise estrutural.
Ditos
especialistas baseiam-se, quando muito, em notícias veiculas pela
mídia, em especial a televisiva e, neste caso, pela produção do jornal
da principal TV aberta do país, cuja sede na cidade do Rio
de Janeiro lhe oportuniza reportar fatos envolvendo a PM Fluminense,
sempre às voltas com a criminalidade organizada dos morros cariocas,
sabidamente de difícil controle pelo domínio territorial sobre grandes
áreas da cidade maravilhosa graças à conduta omissiva de diversos
governadores ao longo dos anos, em especial pelo interesse meramente
‘eleitoreiro’ que a alegada não repressão policial ensejaria.
Privilegiando
o populismo e o interesse eleitoreiro de não incomodar os chefes dos
bandos criminosos, criou-se um caldo de cultura de absoluto desrespeito à
lei e aos poderes constituídos. Ainda hoje, apesar de todas as mortes
de policiais militares ocorridas nos duros embates contra esses feudos
criminosos, as falanges criminosas resistem à pacificação.
Os
policiais fardados, pressionados por todos os lados, buscam
incessantemente recuperar tais áreas para a sofrida população submetida
ao jugo criminoso. Nesse esforço, muitos morrem e muitos matam. Em
alguns casos, em situação fora daquelas previstas estritamente na lei. E
aí, então, desaba o mundo sobre eles. O tempo dedicado à veiculação
desses nefastos episódios impressiona. Chega mesmo a indicar que só pode
haver alguma razão por trás dessa prática claramente massiva.
Assim,
cria-se ou reforça-se o estigma de policial fardado arbitrário,
carrasco, despreparado, sanguinário, como se todos não se preocupassem
em atuar dentro da legalidade, pois melhor do ninguém sabem o quanto sua
instituição é implacável com os desvios de conduta.
Não
vivem assim buscando agregar mais riscos à sua já tão frágil condição
funcional. Pese não justificar qualquer conduta desviante é preciso
notar que na maioria dos erros cometidos pelos policiais fardados há o
interesse de querer prender algum criminoso violento ou chefe de grupos
de alta periculosidade para a paz pública. Diferente são aqueles casos
em que o agente policial se vende, vende a sua instituição e a confiança
da população, cooperando com o crime. Este é um calhorda que deveria
receber punição máxima.
Nesse
cenário, aqui sintetizado, há sim uma situação de ineficiência dos
serviços. A Polícia é acusada por tudo e por todos. As pessoas de modo
geral desconhecem que não é ela quem elabora as leis, não é ela quem
processa e julga, não é ela responsável pela ressocialização dos presos,
não é ela quem deixa de fornecer vagas em creches para os filhos das
mulheres que trabalham fora, não é ela quem não oferece vagas nas
escolas, não é ela quem não remunera adequadamente os professores, e,
portanto, não pode ser crucificada pela qualidade ruim do ensino
público.
Não
é ela quem deixa pessoas em macas no corredor, não é ela quem não
gerencia competentemente a economia e por isso provoca demissão de
trabalhadores e ou a incapacidade do sistema de absorver milhares de
jovens que todo ano chegam ao mercado de trabalho. Não é ela, enfim,
quem dá causa a uma enormidade de conflitos sociais que acabam
desaguando sobre cada um de nós.
Apesar
disso, é preciso mudar. E o que fazer para mudar com inteligência, sem
ranços ideológicos, sem se deixar levar por sentimentos meramente
corporativos? Essa é a questão central que coloca. Como fazer a mudança
para que ela não torne a emenda pior do que o soneto. Temos coragem,
destemor, visão de futuro, compreensão exata de todos os elementos
envolvidos nessa delicada e complexa área para nos atrevermos a dar
algum pitaco?
Se
muitos falam a respeito, porque não expor algumas opiniões nessa
delicada e complexa matéria. Irei fazê-lo com base em mais de trinta
anos de convivência no meio, conhecendo suas entranhas, suas inúmeras
virtudes, e, claro, seus defeitos. Vou ‘atirar’ em algumas direções
nessa área naturalmente efervescente quando alguém se propõe expor alguma direção destinada à reforma do modelo policial estadual.
É preciso, antes, porém, cuidados
preliminares para neutralizar os efeitos colaterais negativos de uma
proposição institucional individual, representativa da visão isolada da
corporação. É preciso, penso, associar a posição institucional sob a
ótica de outras áreas governamentais e ou acadêmicas, sobretudo,
daquelas que atuam no campo da pesquisa sobre a qualidade dos gastos
públicos e o resultado prático das atividades de cada órgão do Estado.
Impõe-se, inicialmente, atribuir um norte magnético à proposta. É imprescindível,
acredita-se, propiciar elementos para a compreensão do papel
constitucional dos demais órgãos integrantes do sistema nacional de
justiça criminal. Eis que de certo modo, referido sistema
abrange não só a parcela do Judiciário voltado para o Direito Penal como
também com os órgãos policiais que fazem interface com os órgãos
judiciais criminais. E, por evidente, com o segmento do Ministério
Público atuante na área criminal.
Por
conta dessa perspectiva, as entidades representativas da Polícia
Militar poderiam, por exemplo, convidar a Federação Nacional dos
Policiais Federais a participar das discussões, pois esta, segundo a matéria abaixo
(reproduzida do site CONJUR), se opunha à aprovação da famigerada PEC
nº37 exatamente porque defende o fim do inquérito policial.
Este
posicionamento contrapõe-se ao da Associação dos Delegados da Polícia
Federal (ADPF), que defendia a aprovação da PEC nº37 manter a
exclusividade da investigação criminal com a polícia dita judiciária.
Logo,
se fosse aprovada a PEC alijaria o MP da fase preliminar na apuração
das infrações penais. Tudo caminhava para a aprovação não fora o clamor
das ruas, como noticiou a imprensa.
A
questão da sobrevivência do inquérito policial entre nós é uma questão
fulcral para a reforma ou não da estrutura atual dos órgãos de segurança
pública no Brasil. Assim, quando um importante segmento da polícia
judiciária federal publicamente critica esse instrumento legal é
emblemático.
É
preciso, pois, contar com esse caldo de cultura para discutir com
profundidade a indispensabilidade ou não do inquérito. Afinal, trata-se
de mera peça resultante da investigação, que, segundo muitos operadores
do Direito, é por essa razão uma das causas do ‘engessamento’ e
morosidade para a elucidação dos delitos. A isso se acrescenta o receio
de que, não raro, e em algumas hipóteses, sirva mais a interesses
escusos do que propriamente ao interesse público.
Segundo
a manifestação do Presidente da Federação Nacional dos Policiais
Federais (matéria reproduzida abaixo), que congrega os agentes da
instituição, tais servidores eram contrários à PEC nº37 por entender que
a exclusividade da investigação na polícia judiciária representaria um
retrocesso.
Subliminarmente,
é possível notar que essa declaração diz se inúmeros casos de grande
repercussão somente foram esclarecidos graças à participação do MP. Ou
seja, a sanção penal chegou aos praticantes dos crimes do ‘colarinho
branco’ em razão, sobretudo, do grau de independência que desfrutam os
membros do “Parquet”. As vulnerabilidades institucionais das polícias
judiciárias as tornam reféns do poder político, cerceando sua autonomia
funcional em casos que envolvam personalidades políticas com cargos nos
respectivos governos.
A
direção da mencionada Federação não poderia dizer, compreensivelmente,
isso com todas as letras. Porém, pese o crescente aumento do prestígio
da Polícia Federal, notadamente depois da significativa melhoria de seus
vencimentos, trata-se ainda de uma instituição submetida ao Poder
Executivo, com cargos em comissão em especial na direção geral,
sujeitando-se a toda sorte de interferências.
Os
que a chefiam, os delegados federais, alguns com poucos anos na
carreira, com as exceções de praxe, buscam crescimento profissional
rápido, sujeitando-se às conveniências do poder nomeante.
A
essas considerações, pode-se acrescer que no plano estritamente
jurídico, o instituto do inquérito policial acha-se superado diante de
sua natureza inquisitorial, como o próprio nome indica, contrapondo-se à
ênfase que a CF/88 deu às garantias do contraditório e da ampla defesa.
Aliás,
numa discussão mais aprofundada (e não é isso que cabe nesse instante)
penso ser necessário debater com constitucionalistas chamados
pós-positivistas o acréscimo que o constituinte de 1988 fez no
dispositivo que na Carta de 1967/69 já assegurava o direito ao
contraditório e à ampla defesa.
Refiro
à expressão ‘aos ‘acusados em geral’, oração adicionada na parte final
do preceito que já previa as duas garantias acima indicadas. Antes de
1988 o contraditório e a ampla defesa eram exigidas nos processos
judiciais e ou administrativos. No texto original da atual Constituição
Brasileira acrescentou-se que tais garantias também se aplicam aos
‘acusados em geral’. A extensão, o alcance e ou a amplitude dessa
inovação não foi, ainda, no meu entendimento, discutida exaustivamente
pelos grandes nomes do constitucionalismo nacional.
Este
ponto não mereceu até hoje minucioso estudo mesmo pelos arautos das
garantias individuais. Dependendo de como se o interprete pode-se
concluir que o contraditório e a ampla defesa seriam exigidas desde o
inquérito, aonde afinal, a rigor, já pesa algum tipo de acusação sobre
alguém. Pois já existindo uma indicação formal de suposta autoria
delitiva contra alguém, é razoável deduzir que uma forma de acusação já
passou a existir no mundo jurídico.
Diferentemente
das Constituições anteriores, na atual que é reconhecida como
Constituição cidadã, a dignidade da pessoa foi elevada à condição de
super-princípio. Por essa ótica singela, o sistema legal deveria ofertar
ao investigado/acusado o direito de se defender desde o nascimento da
investigação/acusação.
Ora,
quando a autoridade de polícia judiciária, mediante Portaria, instaura o
inquérito indica, ainda que minimamente, os elementos fáticos e a
suposta autoria pertinente a uma determinada infração penal. Ao assim
proceder, passa a incidir sobre o suposto autor uma acusação, mesmo que
de forma embrionária. Tanto que há jurisprudência estabelecendo que se
não houver justa causa para a instauração do IP este pode ser
‘trancado’, eis que sem ela, a justa causa, poderia o inquérito
constituir indevido elemento de coerção contra o ‘status libertatis’.
Pois
parecerá apenas uma filigrana jurídica dizer-se que a acusação só
passa a figurar no universo jurídico quando o Judiciário recebe a
denúncia ministerial, momento em que a ação penal é deflagrada. Essa
posição se assenta no fato de que antes dessa etapa processual o
indivíduo é apenas investigado, pois contra ele pesam apenas indícios de
autoria e de materialidade. É, com todo respeito, visão formalista ao
extremo. Para aquele que figura como suposto autor do delito a partir da
instauração do IP já haveria uma acusação, com todos os reflexos
inerentes.
Alguns
outros intérpretes do citado comando constitucional e da correspondente
lei infraconstitucional defendem que o só fato do indivíduo ter sido
nominado na Portaria de instauração do IP nada representa. Segundo
estes, se o indivíduo for formalmente ouvido na peça denominada ‘auto de
interrogatório’, aí sim estaria regularmente indiciado, embora isso
ainda não o coloque na condição de sujeito ativo da persecução penal.
Anote-se,
no entanto, que a decisão do delegado pela oitiva no ‘auto de
interrogatório’ (e não oitiva em termo de declaração) se dá pelo
convencimento da autoridade de polícia judiciária, amparado nas provas
colhidas, de que aquela pessoa fora o autor do delito. Ocorre que depois
do indiciamento formal, ou seja, da oitiva do suposto autor em ‘auto de
interrogatório’ o IP é relatado e, imediatamente após, remetido ao MP, a
quem competiria denunciá-lo ou não. Assim, ao suposto autor, por ora
mero indiciado, nada mais poderá ser feito no IP. Vale dizer,
submeteu-se ao procedimento sem que lhe fosse oportunizado qualquer
possibilidade de defesa.
Isso
foi narrado para suscitar a seguinte questão: se pela interpretação
constitucional for assegurado a ampla defesa durante o IP ele acaba
adquirindo as feições de um processo judicial. Perderia, em
consequência, a sua índole inquisitorial. Com efeito, seria dispensável
uma vez que tais garantias, segundo o atual ordenamento, devem ser
realizadas no curso do processo crime. Manter tais garantias na fase
pré-judicial e na judicial configuraria uma duplicidade desnecessária,
notadamente no que toca à razoável duração do processo.
Diante
da necessidade constitucional de propiciar o direito ao contraditório e
à ampla defesa, o IP é praticamente refeito na fase judicial
propriamente dita. Apenas, e quando muito, são aproveitadas nessa fase
as provas periciais. Assim, o IP constituiria peça que opera em favor
da morosidade judicial na sensível área criminal. Logo, contrária o
interesse coletivo que anseia por rapidez nos processos criminais.
Destaca-se,
para ilustrar, que na atualidade apenas 03 países ainda o conservam:
Brasil, Guiné Bissau e a Indonésia. Nesse cenário, é lícito indagar:
será que não teríamos outro modo de colher provas para a persecução
criminal nos frenéticos dias atuais? Será que o inquérito ainda se
harmoniza com as novas garantias da cidadania?
Por
tais e outras razões, é possível afirmar que o constituinte originário
já houvera sinalizado desde 1988 a direção para a substituição do velho
inquérito. E o fez, segundo penso, a partir da criação dos Juizados
Especiais Criminais para os delitos de menor potencial ofensivo. Com
essa inovação, a Assembleia Nacional Constituinte teria fornecido à
comunidade jurídica um norte magnético a respeito dessa tormentosa
questão.
E
note-se que tais juizados vêm sendo progressivamente aprimorados. No
início, era competente apenas para processar e julgar as infrações
penais apenadas com detenção de até 01 ano. A lei nº9099/95 assim o
definia. Porém, rapidamente o Congresso aprovou nova lei específica para
os Juizados Especiais Criminais na esfera federal, fixando que a sua
competência abrangeria os delitos apenados com até 02 anos de detenção.
Diante disso, aquela regra passou a ser aplicada também nos Juizados
Especiais Criminais no âmbito dos estados.
E
o que é mais alvissareiro: bastando em tais Juizados apenas o chamado
TERMO CIRCUNSTANCIADO para que o titular da ação penal pudesse, se
convencido da materialidade e da autoria, propor a respectiva ação
repressiva judicial.
Assim,
é legítimo afirmar que gradualmente seria possível, com os ajustes
devidos, ampliar a competência desses Juizados com o fito de dar maior
efetividade e celeridade para a resposta judicial na esfera criminal.
Esta dinâmica ensejaria finalmente a desnecessidade dos inquéritos
policiais.
A
partir dessa nova concepção, pode-se cogitar a reestruturação do SNSP a
partir da extinção da chamada polícia judiciária, principalmente no
âmbito estadual. Pois a dicotomia PM/PC causa prejuízos aos
contribuintes por força da crescente duplicidade de gastos com a
manutenção de dois órgãos policiais, aos quais são carreadas substancias
fatias do orçamento público estadual para a mesma finalidade. Não
existindo a mesma dicotomia na esfera federal, o ônus orçamentário para a
manutenção da polícia judiciária federal é menor, e, assim, mais
racional do que se constata nas unidades federadas.
A
viabilidade político-jurídico para tanto condicionasse, penso, à
necessária transformação das carreiras hoje existentes nas Polícias
Civis ou, então, do remanejamento de algumas delas para outros órgãos
afetos ao sistema nacional de justiça. Inicialmente, impõe-se cuidar
do novo papel institucional que caberia aos delegados de polícia
(estaduais e ou federais), eis que estes pela condição de dirigentes da
atual entidade a que pertencem serão aqueles mais diretamente afetados.
A
alternativa que certamente mais os interessaria seria oportunizar-lhes a
possibilidade, mediante concurso interno, se tornarem juízes nos
juizados especiais criminais. Ou como uma espécie de JUIZ DE INSTRUÇÃO,
OS CHAMADOS JUÍZES DA PROVA, OU AINDA COMO JUÍZES PLENOS PARA AS
INFRAÇÕES PENAIS ABRANGIDAS NA COMPETÊNCIA DOS REFERIDOS JUIZADOS.
Afinal,
sendo todos bacharéis em direito, admitidos mediante concurso público,
preencheriam a rigor as condições técnicas e formais para integrar a
nova categoria funcional sem qualquer ofensa ao texto constitucional.
Por meio da transposição funcional, autorizada por meio de emenda
constitucional seria juridicamente possível, acredito, viabilizar a
reformulação.
Seriam
realizados concursos entre os delegados para definir quais seriam
transpostos para a nova função, quando então passariam a integrar o
poder judiciário, e quais seriam aqueles que se tornariam assistentes
dos promotores e ou dos procuradores da república. Contudo, num ou
noutro caso recebendo a mesma remuneração (ou próxima) dos membros
dessas instituições (Juízes e Promotores).
Com
tais critérios e iguais oportunidades, certamente os delegados
(estaduais e ou federais) não irão opor-se a essa nova sistemática,
sobretudo os estaduais uma vez que os delegados federais já se encontram
quase que na mesma faixa de vencimentos dos juízes federais e ou dos
procuradores da república.
Por
seu turno, os investigadores de polícia e os agentes federais passariam
a pertencer, respectivamente, ao Ministério Público Estadual e Federal,
integrando quadro de servidores qualificados para o desenvolvimento das
investigações dos delitos tidos por mais graves. Isso se daria sob a
chefia direta dos delegados que ou tenham optado pela nova carreira ou
não tenham sido aprovados no concurso para juiz de instrução ou juiz
pleno dos juizados especais criminais.
Os
escrivães de polícia igualmente poderiam igualmente ser submetidos ao
mesmo procedimento. Os carcereiros remanescentes seriam remanejados para
as secretarias estaduais de administração penitenciária.
Como
resultante, a polícia judiciária tal como hoje constituída, ao menos na
órbita estadual, seria extinta, restando do atual modelo apenas a
chamada polícia ostensiva fardada, a quem poderiam ser acrescentadas
outras competências para se adequar ao novo cenário institucional.
Penso
que sem algum mecanismo nessa direção, ou seja, sem propiciar aos
delegados de polícia essa perspectiva de crescimento profissional e
remuneratório, qualquer tentativa de reforma do SNSP ficará
inviabilizada. Pois as fortes pressões corporativistas poderão amealhar
apoios políticos de difícil superação.
Resta
saber como o Poder Judiciário e o MP se posicionarão, em especial pelo
fato não escondido de se oporem por todos os meios ao crescimento no
número de Juízes e Promotores, diante do receio de que isso redundará na
contração dos seus vencimentos.
Tanto
é que por força desta ‘preocupação’ institucional, refratária a
ampliação do número de Juízes, o Brasil hoje detém apenas 10% do número
de juízes da Alemanha. Temos 20 mil contra 200 mil naquele país, cujo
grau de litigiosidade é bem menor do que no nosso, e cuja população é
menos da metade da brasileira.
A
isso se poderia contrapor que a do novo modelo permitirá mais economia
de recursos com o fim da duplicidade dos gastos com as atuais duas
polícias, de onde o erário redirecionará os recursos para suprir o
aumento com a folha de pagamentos com a inclusão dos novos membros. Por
essa questão de natureza estritamente econômica, vital para o
convencimento das partes envolvidas e do Parlamento, mais adiante
sugerirei que outra entidade seja convidada pela AOPM.
Porque
infelizmente não basta contar com a adesão da sociedade pela
perspectiva de que o novo modelo enfim propicie um sistema de justiça e
segurança mais eficientes, melhor qualificados para atender os seus
legítimos anseios. É um caminho difícil, penoso, que, porém, um dia será
iniciado em homenagem aos superiores interesses da cidadania.
Na
busca por novos horizontes, menciono a iniciativa da própria Polícia
Civil paulista na linha do que propugnei. Ou seja, a sua cúpula criou,
em caráter experimental, os chamados NÚCLEOS ESPECIAIS CRIMINAIS –
NECRIM, cuja finalidade é a de promover a resolução mediante composição e
acordo para os crimes/contravenções de menor potencial ofensivo, numa
clara demonstração da visão de futuro da instituição.
Nos
lugares onde foram instalados, os resultados têm sido excelentes,
segundo noticiam, de forma que estão sendo ampliados. Isto permite
afirmar que se a reforma do sistema contemplar essa direção os delegados
não se oporão. Ainda mais se associado a isso obtiverem ganho real em
seus vencimentos.
Com
amparo nessas notas, proponho à AOPM o aprofundamento dessa sugestão,
convidando-se os representantes paulistas da Federação Nacional dos
Policiais Federais a fim de desencadear os estudos e reflexões conjuntas
acerca do novo modelo de segurança pública para o país.
Conforme mencionado acima, reproduzo a matéria publicada no site CONJUR: “PEC 37 divide agentes e delegados da Polícia Federal” “A
Polícia Federal está dividida sobre a Proposta de Emenda à Constituição
37, que assegura às polícias federal e civil dos estados e do Distrito
Federal competência privativa para apurar infrações penais de qualquer
natureza. Enquanto delegados se posicionam favoráveis à PEC, agentes se
mobilizam em sentido contrário. Nesta sexta (13/6), a Federação Nacional
dos Policiais Federais (Fenapef) publicou uma nota reafirmando ser
contra a aprovação da PEC 37. Nela, a Fenapef diz que a proposta "nada
tem a contribuir ao aperfeiçoamento do combate à criminalidade, e muito
menos se preocupa com o interesse da população ao restringir a
capacidade de investigação do poder público. A federação, que representa
os 27 sindicatos dos policiais federais em todo o país, diz que a PEC
criará um monopólio na atuação pública e classifica a proposta como uma
"luta corporativista desenfreada por poder, capitaneada por associações
de delegados de polícia, que tentam, a todo custo, pressionar os
parlamentares". A nota diz ainda que a PEC é um retrocesso a um modelo
de persecução já arcaico e desatualizado. O presidente da Fenapef, Jones Borges Leal,
reforça o que foi publicado na nota, classificando a PEC de
corporativista e afirmando que o objetivo dela é afastar quem fez as
maiores investigações no país. Leal defende uma mudança na persecução
penal. "É preciso mudar no macro. Pegar os melhores modelos de
investigações, os melhores juristas, sentar com todos os envolvidos e
discutir um novo sistema para substituir este nosso. O inquérito
policial não funciona, é um instrumento arcaico e pouco produtivo",
explica. O posicionamento contrário à proposta não é novo na Fenapef. Em
dezembro de 2012, a entidade se uniu à Associação Nacional dos
Procuradores da República (ANPR) e a outras entidades da sociedade civil
para lançar uma campanha contra a PEC, intitulada Brasil contra a
impunidade.
bacharelismo.
Em sentido oposto, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) é favorável à PEC. Para a associação, a proposta não fortalece o delegado e sim a polícia judiciária como um todo. Com a proximidade da votação da proposta, prevista para o próximo dia 26 de junho, a ADPF fez um mobilização esta semana no Congresso Nacional, entregando uma cartilha com suas argumentações a todos os deputados e líderes de partidos. Para o presidente da ADPF, delegado Marcos Leôncio, o posicionamento contrário à PEC pela Fenapef é questão interna e que o objetivo da federação é fazer uma revolução na persecução penal. "Eles entendem que a proposta fortalece o delegado e por isso são contrários. Eles querem fazer uma revolução na persecução penal, querem a extinção do delegado e o fim do inquérito policial", diz. Segundo Marcos Leôncio, a filosofica da Fenapef é fazer um novo modelo de investigação criminal e combater o bacharelado em Direito. "Nós delegados somos bacharéis em Direito, e eles querem acabar com isso. Eles entendem que há um domínio do bacharelismo no sistema de persecução e querem acabar com isso, criando um novo modelo de investigação criminal". PEC 37:
Nesta quinta-feira (13/6), o grupo de trabalho criado para discutir a proposta apresentou um novo texto que prevê um meio-termo entre as reivindicações das duas categorias: permite que o Ministério Público investigue, mas apenas em casos "excepcionais" e com fiscalização da Justiça. Membros do MP e delegados de polícia terão até a próxima terça-feira (18/6) para avaliar este texto. ‘A proposta aproxima-se muito de consenso porque garante direitos ao Ministério Público, fixa e delimita constitucionalmente as competências investigatórias da polícia, prevê controle investigatório do MP por parte do poder judiciario, fixa prazo, obriga a transparência e também prevê a atuação da defesa do investigado durante a investigação do Ministério Público", avalia o deputado Fábio Trad (PMDB-MS), que participou da reunião no ministério da Justiça, com membros do Ministério Público e das polícias civil e federal. Segundo Fabio Trad, com ou sem consenso, o texto definitivo deve ser apresentado na próxima quarta-feira (19/6) para os líderes partidários. A ideia é colocar este texto alternativo junto à PEC 37 para que seja votado preferencialmente. A votação da PEC no Plenário da Câmara está marcada para o dia 26 de junho. Para aprovar a proposta, é preciso pelo menos 308 votos favoráveis (3/5 dos deputados) em duas votações (1º e 2º turno). Para virar lei, a proposta precisa passar pelo mesmo processo no Senado. Nesta semana, o Conselho Nacional de Justiça encaminhou aos presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), uma nota técnica contrária a proposta. A nota registra que o CNJ é cauteloso em manifestações dessa natureza, mas optou por encaminhar sua posição ao Congresso Nacional porque a PEC 37 pode trazer “inovação altamente lesiva ao interesse social e ao exercício da jurisdição”. O texto registra, ainda, que há dúvida sobre a constitucionalidade da proposta. A nota foi aprovada por unanimidade no CNJ”. Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2013
Em sentido oposto, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) é favorável à PEC. Para a associação, a proposta não fortalece o delegado e sim a polícia judiciária como um todo. Com a proximidade da votação da proposta, prevista para o próximo dia 26 de junho, a ADPF fez um mobilização esta semana no Congresso Nacional, entregando uma cartilha com suas argumentações a todos os deputados e líderes de partidos. Para o presidente da ADPF, delegado Marcos Leôncio, o posicionamento contrário à PEC pela Fenapef é questão interna e que o objetivo da federação é fazer uma revolução na persecução penal. "Eles entendem que a proposta fortalece o delegado e por isso são contrários. Eles querem fazer uma revolução na persecução penal, querem a extinção do delegado e o fim do inquérito policial", diz. Segundo Marcos Leôncio, a filosofica da Fenapef é fazer um novo modelo de investigação criminal e combater o bacharelado em Direito. "Nós delegados somos bacharéis em Direito, e eles querem acabar com isso. Eles entendem que há um domínio do bacharelismo no sistema de persecução e querem acabar com isso, criando um novo modelo de investigação criminal". PEC 37:
Nesta quinta-feira (13/6), o grupo de trabalho criado para discutir a proposta apresentou um novo texto que prevê um meio-termo entre as reivindicações das duas categorias: permite que o Ministério Público investigue, mas apenas em casos "excepcionais" e com fiscalização da Justiça. Membros do MP e delegados de polícia terão até a próxima terça-feira (18/6) para avaliar este texto. ‘A proposta aproxima-se muito de consenso porque garante direitos ao Ministério Público, fixa e delimita constitucionalmente as competências investigatórias da polícia, prevê controle investigatório do MP por parte do poder judiciario, fixa prazo, obriga a transparência e também prevê a atuação da defesa do investigado durante a investigação do Ministério Público", avalia o deputado Fábio Trad (PMDB-MS), que participou da reunião no ministério da Justiça, com membros do Ministério Público e das polícias civil e federal. Segundo Fabio Trad, com ou sem consenso, o texto definitivo deve ser apresentado na próxima quarta-feira (19/6) para os líderes partidários. A ideia é colocar este texto alternativo junto à PEC 37 para que seja votado preferencialmente. A votação da PEC no Plenário da Câmara está marcada para o dia 26 de junho. Para aprovar a proposta, é preciso pelo menos 308 votos favoráveis (3/5 dos deputados) em duas votações (1º e 2º turno). Para virar lei, a proposta precisa passar pelo mesmo processo no Senado. Nesta semana, o Conselho Nacional de Justiça encaminhou aos presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), uma nota técnica contrária a proposta. A nota registra que o CNJ é cauteloso em manifestações dessa natureza, mas optou por encaminhar sua posição ao Congresso Nacional porque a PEC 37 pode trazer “inovação altamente lesiva ao interesse social e ao exercício da jurisdição”. O texto registra, ainda, que há dúvida sobre a constitucionalidade da proposta. A nota foi aprovada por unanimidade no CNJ”. Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2013
Retornando
ao tema, cabe anotar que o Estado moderno, proativo, que exorta o
cidadão à participação na condução da coisa pública, deve buscar
permanentemente mecanismos que garantam a eficiência da ‘máquina
pública’. A eficiência é, além do mais, um dos princípios que informam a
administração pública brasileira (art.37 da CF/88).
A
busca da eficiência exige constantes reavaliações. No campo estrito da
correção de rumo, o diagnóstico da eficiência das instituições constitui
ferramenta elementar. Através do diagnóstico qualificado (e não aquele
superficial, promovido pelos pseudoespecialistas) será possível apurar,
por exemplo, o que estaria comprometendo a equação custo/benefício.
Avaliar
se o montante alocado para o custeio das atividades meio não está
afetando em parte a atividade fim na segurança pública. De cada mil
reais investidos no segmento, qual o percentual que efetivamente acaba
sendo aplicado nas políticas de prevenção criminal, que é a rigor o
maior anseio do contribuinte.
Este
anseia pela qualidade e maior quantidade dos serviços ofertados, que
ocasionalmente pode não ser obtido à proporção que a maior parcela dos
recursos for absorvida pelos gastos com as chamadas atividades meio dos
órgãos responsáveis por aqueles serviços. Tais pontos, curiosamente,
não vêm merecendo a devida atenção nos editoriais jornalísticos que
versam sobre os índices de violência e de criminalidade.
De
modo geral, as análises retratadas nos editoriais atribuem, de forma
enfática, a responsabilidade pela sensação de insegurança aos órgãos
policiais, sugerindo que o recrudescimento da violência e da
criminalidade deriva fundamentalmente da ineficiência da polícia. Mesmo
quando tais editoriais suscitam que não há uma razão exclusiva para
explicar esse nefasto fenômeno, os editoriais insistem na imputação de
ineficiência do aparato policial. E o fazem por quê? Será que de fato o
próprio modelo dicotômico não opera em desfavor da eficiência,
contrário, portanto, às expectativas do cidadão?
Se
os aludidos editoriais contemplassem outros corresponsáveis acabariam
autoanulando o objetivo da crítica. Significa dizer que a opção dos
analistas por concentrar a crítica unicamente nos órgãos policiais,
atinge corretamente o alvo, de modo oblíquo. Se em vez disso suscitassem
as diversas causas que cooperaram para a baixa eficiência dos órgãos
policiais, estariam, de certo modo, poupando os dirigentes e os membros
dessas organizações.
E,
via de consequência, dando azo ao surgimento do velho ditado: se muitos
são os responsáveis, ninguém é culpado de nada. Os dirigentes e os
integrantes dos órgãos policiais são, aos ‘olhos do público’, os maiores
responsáveis pela boa ou má operacionalização do sistema de prevenção e
ou repressão criminais.
Nessa
condição assumem compulsoriamente a qualidade de destinatários das
críticas, vez que, nomeados pelo poder político para a condução do
aparato existente, precisam demonstrar, a todo instante, competência e
dedicação para liderar suas equipes ou para a superação dos óbices que a
profissão apresenta.
Se
os editoriais ficassem a especular sobre a eficácia do modelo policial
constitucionalmente construído, tornaria natimorto o esforço para
‘sacolejar’ os executivos policiais e os membros das respectivas
organizações. Outro tipo de enfoque, de análise, tal como o exame
detido da estrutura policial brasileira, seria mais adequado para um
seminário acadêmico, e não para a formulação de crítica num diário.
Penso que é essa a razão porque a mídia quando a ela, a estrutura
policial, se reporta o faz de modo abreviado visando aguçar o interesse
da academia (ou do Parlamento) para o seu aprofundamento.
Veja-se: competindo ao ‘Estado’ (Executivo e o Parlamento) a concepção e a estruturação do sistema
nacional de segurança pública, questão que envolve recursos vultosos,
interesses corporativos e até ideológicos, abordar num texto
jornalístico a magnitude do assunto seria inviável, além do que o
resultado poderia ser pífio. Reconhecendo tais obstáculos, portentosos
diga-se, os editores não têm se arriscado em desenvolver esforço para
fomentar a discussão de alternativas para o sistema instituído, e que
vem se mostrando ineficiente.
Assim,
socialmente a melhor estratégia é direcionar a crítica ao reduzido
poder de inibição e repressão criminais apresentados pelos órgãos
policiais, sem ingressar na avaliação se a baixa eficiência deles
poderia ter como causa colaboradora o próprio modelo organizacional de
polícia. Eis que a crítica genérica ao ‘Estado’ em lugar dos órgãos
policiais propriamente ditos, desprezaria estratégia de comunicação
eficaz para gerar massa crítica mais qualificada.
O
enfoque da questão estrutural em lugar da conjuntural, tal como em
curso, produzir consequência alguma, à proporção que ficaria cingida ao
campo teórico. E, portanto, não atingindo eficazmente os ocupantes do
poder público com responsabilidade sobre a área.
Nesse
sentido, o constituinte de 1988, premido pelas fortes pressões
corporativas, manteve a estrutura preexistente do sistema nacional de
segurança pública. Desse jeito, e tamanho o universo de questões
candentes sobre as quais se debruçavam naquele instante histórico, os
constituintes não realizaram esforço maior para a reavaliação daquele
modelo e, menos ainda, realizaram análise prospectiva sobre as mudanças
que adviriam com a nova Constituição.
Isto
permite dizer que o tema foi tratado burocraticamente. As fortes
pressões, ininterruptas, de todos os lados, que não se compatibilizavam
entre si, acuaram o constituinte. Acuado, optou-se pela manutenção do
‘status quo’ como resposta pragmática. Descuidaram, por essa motivação,
que a segurança da população deve ser uma preocupação perene de todas as
esferas de poder, às quais cabe a conjugação de esforços e recursos
para dar qualidade e eficiência aos serviços que prestam para ofertar
tranquilidade aos seus conterrâneos.
Afinal,
sequer cuidaram de realizar qualquer exercício sobre a racionalidade do
sistema e o custo para mantê-lo em operação. Se já naquele momento
tivessem enfocado o assunto por esse ângulo, teríamos hoje certamente um
modelo mais leve, menos oneroso e, provavelmente, mais eficiente no que
tange à qualidade dos serviços.
No
plano das finanças públicas, o constituinte apenas ponderou o alto
custo exigido para a manutenção de todo o aparato policial por apenas um
dos entes estatais. Eis que se optasse pela unicidade policial (Polícia
Nacional), os encargos recairiam exclusivamente sobre o tesouro
federal, dele subtraindo parcela substancial dos recursos.
Desse
modo, mais do que a preocupação com a autonomia dos estados membros o
constituinte não alterou o modelo dicotômico (Polícia Civil e Militar)
de segurança pública pela combinação das duas razões expostas: a
irresistível pressão corporativista e o exame aligeirado da questão do
financiamento do sistema por um único ente estatal.
Secundariamente, no campo político-ideológico o constituinte levou em conta, simultaneamente, dois aspectos:
1)
A criação da polícia única, de âmbito nacional (Polícia Federal com
competência plena para a prevenção e ou repressão), tornaria a
instituição demasiadamente forte, tal como sucedeu noutros países,
podendo comprometer o próprio regime democrático, ou, ainda, reduzir os
espaços para as ‘negociatas’ daqueles gestores descompromissados com a
‘coisa pública’, e,
2)
Impedir a participação plena dos municípios no SNSP evitando assim
riscos pelo fato, sobretudo nas pequenas e médias cidades, de a outorga
do poder de polícia criminal aos prefeitos representar potencial perigo
sobre o processo eleitoral municipal, com reflexos na eleição de âmbito
estadual e ou nacional.
Em
muitos grotões, seria inevitável o emprego da polícia municipal como
uma espécie de guarda pretoriana para constranger e refrear os ânimos da
oposição. Um novo tipo de ‘coronelismo’ passaria a imperar, anulando a
livre expressão do voto popular diante da inexistência ou sufocação das
correntes políticas contrárias ao poder local.
Para
contemporizar a pressão exercida por entidades representativas dos
municípios e de alguns segmentos da intelectualidade, o constituinte
cedeu autorizando a criação das guardas municipais nos municípios com
população acima de um patamar e de que essas instituições se limitassem a
cuidar dos próprios da municipalidade.
No
entanto, os constituintes sequer cogitaram da possibilidade de
compartilhamento de determinadas despesas pelos municípios, tal como
ocorre se dá, por exemplo, com o corpo de bombeiros militar, contexto no
qual os estados membros custeiam o salário desses agentes, e as
prefeituras as demais despesas. Se igual divisão de encargos financeiros
fosse constitucionalmente estendida para as atividades de polícia,
impunha-se aumentar o repasse dos recursos da respectiva unidade da
Federação e do próprio governo federal para bancar mais esses encargos,
reduzindo-lhes, em contrapartida, o poder de barganha característico dos
costumes políticos nacional.
Além
disso, anoto que a opção do constituinte de 1988 pela preservação do
sistema dicotômico de polícia (PM/PC), já superado em outras nações
ocorreu precipuamente pela falta de uma proposta capaz de conciliar o
‘lobby’ das duas polícias estaduais. Isto inviabilizou a concepção de um
novo modelo capaz de atender aos diferentes e conflitantes interesses
corporativos envolvidos.
Anulou-se
assim a expectativa de que os construtores da nova ordem constitucional
repensassem o modelo bipartido (PM e PC). Aguardava-se que o fariam com
o propósito de apurar, dentro outros pontos, se os recursos canalizados
para o custeio das duas corporações não representaria, per si, uma
duplicidade nociva.
Pois
mesmo num exame menos detido seria possível diagnosticar que parcela
substancial dos recursos eram (e ainda são) alocados para manter suas
instalações físicas, cada qual com dezenas de unidades espalhadas pelo
território estadual, reduzindo, consequentemente, a disponibilidade
orçamentária para áreas mais prioritárias, tal como a melhoria salarial
dos servidores policiais,treinamento, compra de mais e melhores equipamentos de proteção individual etc.
Por
isso, a questão do investimento público no setor é central para o
diagnóstico do atual modelo. Essa razão pela qual no início mencionei
que além da participação de outros órgãos do próprio SNSP nas
discussões, seria vital a participação de ao menos de outro órgão.
Estava
referindo ao Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA -,
órgão de reconhecida competência técnica, cujos estudos e diagnósticos
são respeitados internacionalmente. No âmbito desse Instituto, e pelo
que é dado conhecer, existiria um departamento específico para
‘radiografar’ as políticas públicas em vigor. Ora, será que não seria
oportuno e absolutamente indispensável contar com a colaboração desse
departamento para o debate que se pretende entabular. Dispondo de
argumentos economicistas, penso que a compreensão global do assunto será
mais facilmente assimilada pelas instâncias de poder e pela própria
mídia nacional, cooptando importantes aliados para a defesa da eventual
remodelação do atual sistema.
Um
exemplo isolado da questão orçamentária pode ser extraído da atual
celeuma entre o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Ministério Público
Estadual diante do pedido do primeiro para que os promotores desocupem
as salas que usam nos fóruns. Isto se deu pela necessidade de ampliar
os espaços dedicados especificamente ao Judiciário Estadual.
O
chefe do MP/SP vem tentando retardar a desocupação, que já tem data
estabelecida, sob o argumento de que para tanto precisaria de mais de 1
bilhão no seu orçamento para construir e ou alugar sedes próprias para
os membros da instituição. Se o MP detivesse, como sugerido atrás, a
plenitude da investigação e dos meios humanos e materiais para tanto sob
seu comando único, essa questão paralela sequer existiria, à medida que
a PC/SP dispõe de inúmeras sedes, algumas ociosas, pelo estado afora.
A
falta de interface entre o SNSP e o sistema nacional de justiça (SNJ)
torna as políticas de segurança pública ainda mais frágeis. Em
consequência, beneficiando-se os infratores penais. Ao menos no campo
criminal, deveria existir sintonia fina entre os dois sistemas. Sem isso
ocorre, como se verifica regularmente, dispersão de esforços e
recursos. Ou seja, um atentado ao dinheiro público em termos de gestão
das parcos recursos.
O
alheamento é tamanho com segurança pública que sequer parágrafo sétimo
do artigo 144 da CF/88 foi objeto de deliberação pelo Congresso
Nacional, como todos sabemos. Isto é, mesmo tendo o constituinte
originário preconizado a edição de lei complementar visando estimular a
sinergia entre os órgãos integrantes do sistema nacional de segurança
pública nenhuma iniciativa parlamentar se deu nesses mais de 25 anos. É
uma demonstração clara do descaso e da omissão estatal numa área com
esse nível de prioridade para o interesse público. Buscam agora 'bodes
expiatórios', soluções simplistas, para se esquivar da absoluta desídia
com que os vários governos e parlamentares cuidaram da matéria ao longo
dos anos.
Enfim, outros aspectos poderiam
ser arrolados nesse esforço para indicar as vulnerabilidades do atual
modelo de justiça criminal e, ao mesmo tempo, sustentar ainda mais
consistentemente a proposição apresentada. Contudo, não havendo a
pretensão de exaurir a extensa lista de temas afeitos, há que se
encerrar essa breve digressão pressupondo que os pontos aqui suscitados
seriam, de per si, suficientes para o início das discussões.
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