Por Lucas Grassi Freire - 10 Jun 2013
A Bíblia volta e meia nos faz ter mais abertura a um ponto de vista diferente. Isso acontece mais uma vez no debate requentado sobre desarmamento.
Do ponto de vista religioso, há muito o que se dizer contra a cultura de ódio e violência estimulada pelos nossos filmes e livros.
Porém, filmes e livros não puxam o gatilho de uma arma – quem puxa é um ser humano que deve ser preso, adequadamente acusado, defendido e julgado.
E então? Será que quando a posse e o uso de armas é facilitado, a sociedade fica mais perigosa para as pessoas de bem? O assunto volta à tona por causa dos tiroteios que acontecem com frequência nos Estados Unidos.
O argumento mais óbvio contra a posse de armas é o seu mau uso, ilustrado por esses casos de exceção. Ampliados pela mídia, esses tiroteios em escolas, cinemas e a céu aberto são constantes exemplos de que as armas podem ser abusadas, iniciando ao invés de combater a violência.
Em defesa das armas, a questão da propriedade privada é colocada. Se minha compra, posse e venda de um artigo não é fraudulenta ou agressiva, estou no meu direito de fazer a transação. Há leis mais detalhadas no caso das armas (e do álcool e outros produtos), mas no geral o princípio permanece.
A Bíblia tanto apoia a propriedade privada como contraria moralmente o seu mau uso. E mais: a Bíblia não necessariamente estipula que o mau uso da propriedade privada é uma desculpa para o governo se intrometer.
Porém, o caso da arma que é usada para iniciar violência contra uma outra pessoa vai além da falta de sabedoria ao gerenciar os bens: trata-se de agressão, que deve ser combatida na promoção da justiça pública pelo governo.
Assim, a resposta bíblica aos dois argumentos, o favorável e o contrário ao desarmamento, é que é moralmente legítima (e deveria ser legalmente permissível) a posse de armas, como de qualquer outra propriedade, desde que não seja usada para fins de agressão.
Contudo, existe ainda um outro ângulo bíblico nessa história. De fato, a Bíblia menciona diretamente uma política de desarmamento adotada na época em que o rei Saul e seu filho Jônatas conduziam o povo de Israel:
"E em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada nem lança (...). E sucedeu que, no dia da peleja, não se achou nem espada nem lança na mão de todo o povo que estava com Saul e com Jônatas"
(1Samuel 13:19; 22).
O objetivo dos filisteus, que tinham derrotado Israel e agora impunham essa política de desarmamento, era justamente facilitar uma repressão violenta ao povo de Deus no futuro, quando "não se achou espada" para resistir à tirania.
Ter ou não ter armas para exercer o direito à propriedade, ou até mesmo para se defender de um bandido comum, não é o motivo principal que leva governos autoritários em todo o mundo a desarmar suas populações.
O direito às armas é direito de se preparar melhor para resistir a possíveis tentativas ilegítimas do governo de espoliar a vida, propriedade e liberdade dos cidadãos.
Do ponto de vista bíblico, a resistência deveria ser organizada debaixo de líderes públicos, legítimos, que representassem o povo diante do governo tirânico. Do ponto de vista pagão e revolucionista, as armas servem igualmente para a resistência, embora o princípio político e organizacional seja distinto. Em ambos os casos, a posse de armas pelo cidadão comum faz tremer qualquer ditador. Diz a Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos:
"Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido.
Os Estados Unidos se preparam, mais uma vez guiados pela mídia alarmista, a rever a legislação de porte de armas (e provavelmente a ignorar a Constituição). Enquanto isso, os dois lados do debate se esquecem do principal motivo para a adoção dessa emenda constitucional: preservar a liberdade.
O caso brasileiro é ainda mais complexo, dado o nível de corrupção daqueles que ficariam com armas após um possível desarmamento, sejam eles governo ou bandido. Porém, nossa Constituição Federal é menos "libertária" e mais "estatista". Se é para debater a posse de armas, seria o caso de discutir como ela deve ser facilitada e, obviamente, como combater os que utilizam armas para agressão (a começar pelo próprio governo).
Os nossos cristãos, bem como os dos Estados Unidos, oscilam entre o desarmamento e a posse de armas, usando os argumentos já discutidos. Porém, a relação entre desarmamento e liberdade é raramente destacada.
Os lobos "filisteus" – sejam eles norteamericanos ou sulamericanos, querem desarmar as ovelhas para fazer a festa com sua vida, liberdade e propriedade. Lobos vorazes devem ser contidos com bons limites abstratos ou práticos. Eis aqui um limite bem prático!
E um limite mais abstrato seria a restrição do magistrado civil à esfera da justiça pública, combatendo os crimes de agressão, crimes de vítima, muitas vezes feitos com uso de armas, muitas vezes sem.
Um governo ocupado em fazer seu papel deixa de ter tempo e recursos para ser grande parte do problema. Um governo justo deixa de ser ameaça contra a qual é preciso manter o direito de portar armas.
*Lucas Grassi Freire é editor geral do portal Política Reformada, doutor em Política pela Universidade de Exeter, onde se formou mestre em Relações Internacionais. É analista de relações internacionais pela PUC-Minas e economista pela UFMG.
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