terça-feira, 20 de outubro de 2015

Ciclo completo e desmilitarização

Ciclo completo e desmilitarização

Uma coisa não depende da outra.
Há equivoco nesse artigo logo de começo:




Antes de discutir o ciclo completo, é preciso 

desmilitarizar a polícia

Francisco Sannini Neto e 

Henrique Hoffmann Monteiro de Castro



O interrogatório é muito fácil de fazer;
Pega o favelado e dá porrada até doer.
O interrogatório é muito fácil de acabar;
Pega o bandido e dá porrada até matar. [1]
Não foi por acaso que a Constituição da República conferiu
 os poderes de prevenção (policiamento e patrulhamento 
ostensivo) à Polícia Militar, à Polícia Rodoviária Federal e
 à Guarda Municipal (artigo 144, parágrafos 12º, 5º e 8º da 
CF), de um lado, e de repressão (investigação criminal) 
à Polícia Civil e à Polícia Federal (artigo 144, parágrafos 
12º e 5º da CF), de outra banda. Cuida-se de conquista
 histórica, que objetiva evitar a hipertrofia de 
quaisquer das instituições policiais, servindo como 
contenção ao arbítrio estatal.
A outorga da atribuição de investigar crimes 
comuns à Polícia Judiciária não assusta, porquanto 
o delegado de Polícia é o único policial que faz
 parte de uma carreira jurídica, como confirmado
 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal [2] e 
pelo legislador no artigo 2º da Lei 12.830/13. Já 
quanto aos oficiais da Polícia Militar, ainda que 
 tenham formação de grau superior, o STF já 
deixou claro que suas atribuições não são "sequer 
assemelhadas às da carreira jurídica" [3]. O 
 Superior Tribunal de Justiça, de igual forma, 
sentenciou que a atividade do miliciano "não 
caracteriza atividade relacionada a carreiras
 jurídicas" [4]. A mesma conclusão atinge os 
policiais rodoviários federais e os guardas 
municipais, pois onde há a mesma razão, aplica-se
 o mesmo direito.
Não por outra razão a doutrina sublinha que todo
 policial militar, do mais moderno soldado ao mais
 veterano coronel, é considerado um agente da 
Autoridade Policial. De igual maneira ocorre com
 o patrulheiro e o guarda municipal [5]. Constatação 
essa que não importa em qualquer demérito para
 a importante função desempenhada pelos policiais
 fardados, mas apenas esclarece qual a missão 
de cada um na persecução penal, colocando cada
 personagem em seu respectivo lugar [6].
Por isso mesmo, o Supremo Tribunal Federal 
tem assentado a incompatibilidade da Polícia Fardada
 com a tarefa investigativa, que deve ser presidida pelo
 delegado de Polícia [7].
Vistas essas premissas jurídicas, não se nega que 
o sistema de Segurança Pública brasileiro, tão 
combalido pela falta de investimentos, pode ser 
aperfeiçoado a fim de que consiga maior eficácia
 na prevenção e repressão à criminalidade. Tanto
 que há diversas proposições legislativas que
 almejam esse desiderato.
Nesse campo de ideias, o sucateamento do aparato
 investigativo estatal é campo fértil para o
 surgimento de concepções polêmicas e 
 mirabolantes, escoradas num legislador cada vez 
mais ávido em satisfazer a opinião pública com
 um Direito de emergência. Algumas propostas, 
por iniciativa e apoio de parlamentares 
oriundos da caserna, ignoram a pluralidade de
 mecanismos de controle social [8] e reduzem
 o problema da criminalidade à Polícia, mais 
especificamente à investigação criminal. Com essa 
visão distorcida, propõe-se que policiais fardados 
possam investigar civis, como se essa aberração
 representasse o remédio para todos os males.
 Com a lente enviesada, enxergam num problema
 a solução.
É nesse contexto que surge a discussão acerca do
 famigerado ciclo completo de polícia. Trata-se de 
modelo no qual as tarefas de prevenção de delitos
 e investigação criminal se reúnem na mesma 
Polícia. Isto é, a própria instituição policial responsável
 pela captura do sujeito em flagrante delito poderia
 formalizar o termo circunstanciado, auto de prisão
 ou apreensão em flagrante e toda a investigação 
ulterior, realizando o controle de legalidade da 
ação policial e coibindo eventuais abusos.
Nota-se que o ciclo completo de polícia não é 
inaceitável por si só. O que é inconcebível é a 
militarização desse arquétipo, criando uma 
Polícia Militar com superpoderes, a exemplo do
 que se pretende com a Proposta de Emenda
 à Constituição 431/2009.
A monstruosidade de uma investigação criminal
 presidida por miliciano salta aos olhos. Agride
 o ordenamento jurídico e o bom senso 
imaginar um policial fardado, integrante de 
carreira não jurídica, lavrando autos de prisão em
 flagrante, fazendo análises sobre tipificação 
material, concurso de crimes, nexo de 
causalidade, tentativa qualificada, crime impossível,
 justificantes e dirimentes, conflito aparente 
de leis penais, imunidades, erro de tipo, entre outras.
Não podemos olvidar que a prisão em flagrante
 constitui um instrumento constitucional de imediata
 proteção aos direitos fundamentais. A restrição 
de um direito fundamental (liberdade de locomoção)
 só se justifica pela proteção do bem jurídico contido 
no tipo penal violado, sendo que apenas uma 
autoridade oriunda do meio jurídico pode ser 
capaz analisar as inúmeras circunstâncias que
 influenciam na caracterização de um crime, 
observando-se os direitos e garantias fundamentais 
do suspeito.[9]
Justamente por isso, entendemos que não se deve 
sequer discutir a proposta de ciclo completo antes
 de se extirpar o militarismo da Segurança 
Pública brasileira. É dizer: a desmilitarização
 precede o debate. Esse alerta vem sendo feito 
por juristas[10] e estudiosos das ciências sociais[11],
 e até mesmo por militares.[12]
Nesse ponto, irretocável a lição do Instituto 
Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM):
Tristemente pouca, nossa memória. Resultado de uma

grande mobilização civil pela democratização do país,

a Constituição de 1988 adverte-nos quão perigoso é

atribuir a militares investigações estranhas ao seu universo

próprio. (...) Ora, uma instituição militar não é estruturada

a partir da formação jurídica de seus quadros. Não é voltada à

cultura do direito enquanto um valor em si mesmo. (...) Por trás

de todas essas propostas esdrúxulas, o movimento subjacente

é nítido. Trata-se de militarizar a própria ideia de segurança

pública, reclamando-a da cidadania que é seu espaço

próprio para confiná-la nos quartéis, batalhões e

dependências tais.[13]
Noutro editorial, prossegue o IBCCRIM:
Já é passada a hora de o Estado restituir à sociedade a

polícia que a última ditadura lhe subtraiu. Caso contrário,

a presidência da Polícia Judiciária, outrora envergando a

toga, estará prestes a apresentar-se de farda à sociedade,

a dano da boa administração da justiça criminal que

há tempos se aguarda.[14]
Na mesma linha estão o Conselho de Direitos
 Humanos da Organização das Nações Unidas[15], 
a Corte Interamericana de Direitos Humanos,[16]
 a Anistia Internacional,[17] a Comissão Nacional da
 Verdade[18] e a Secretaria Nacional de Direitos 
Humanos[19]. Ora, se a sociedade moderna defende 
que sequer o policiamento ostensivo deve ser feito
 por instituição militar, com maior razão não pode
 prevalecer um regime castrense de investigação criminal.
Fácil perceber que o discurso que trata o ciclo 
completo de polícia como uma panaceia para
 os problemas da Segurança Pública não 
consegue camuflar ambições corporativistas dos
 policiais fardados:
O debate em prol do ciclo está sendo capitaneado pelos

oficiais da PM, suas associações de classe e os seus

deputados eleitos. É uma luta dos oficiais da PM travestida

de algo que irá beneficiar a sociedade, mas que na realidade

irá dar ainda mais poder para o oficialato das corporações.

(...) As PMs não possuem prática, não têm formação e não

têm histórico de investigação de crimes. Via de regra,

quando fazem isso, o fazem adotando a violência, a

ameaça e a humilhação das pessoas. Para as PMs ter

ciclo completo de polícia, elas precisariam mudar r

adicalmente a sua formação e a cultura organizacional

que possuem hoje.[20]
Vale destacar que mudança dessa natureza 
significaria flagrante violação ao princípio 
da vedação do retrocesso[21]. Como temos 
 sustentado, a sanha utilitarista não pode servir 

de pretexto para que policiais fardados passem
 a lavrar termo circunstanciado no capô da viatura, 
conduzir civis para destacamentos militares, ou 
prender pessoas em flagrante, num retrocesso que
 jogaria por terra garantias que não foram 
conquistadas do dia para a noite. Ao amparar-se
 no enganoso discurso de combate à criminalidade,
 a Polícia Fardada, pretende promover sua 
hipertrofia à custa de conquistas históricas. 
Afinal, é um direito fundamental do cidadão 
ser investigado tão somente pelo delegado natural.
O alerta do Supremo Tribunal Federal vem a calhar:
É preciso advertir esses setores marginais que atuam

criminosamente na periferia das corporações policiais

que ninguém, absolutamente ninguém — inclusive a Polícia

Militar — está acima das leis.[22]
É esse, aliás, o espírito de um Estado Democrático 
de Direito, onde todos devem respeito à lei, não
 podendo se admitir que a justiça seja feita a 
qualquer custo, ao arrepio dos direitos e 
garantias individuais. Sendo assim, toda instituição
 policial precisa se pautar por essa premissa, 
afinal, a Segurança Pública é um bem 
jurídico basicamente instrumental, o que 
significa que ela não constitui um fim em si 
mesma, mas um meio através do qual vários 
outros bens jurídicos são. Sempre que a 
Segurança Pública ou outras expressões 
similares (por exemplo Segurança Nacional, 
Ordem Pública etc.) são colocadas em primeiro
 plano ou como fins e não instrumentos para 
assegurar outros bens jurídicos, descamba-se 
facilmente para o autoritarismo e a 
violação dos direitos fundamentais na 
conformação de um chamado "Estado Policial". Nesse sentido:
Quando lemos ou ouvimos falar de segurança, pensamos

imediata e erroneamente, em coação, em restrição de direitos,

de liberdades e garantias. São poucos os que pensam na

segurança como um direito garantístico do exercício dos

demais direitos, liberdades e garantias, i. e., como direito

garantia. (...). A segurança como bem jurídico coletivo ou

supra – individual não pode ser vista em uma perspectiva

limitativa dos demais direitos fundamentais, mas, tão só e

em uma visão humanista e humanizante, como garantia da

liberdade física e psicológica para usufruto pleno dos

demais direitos fundamentais. [23]
Parece-nos que essa proposta de ciclo completo
 de polícia, nos moldes propostos pela Polícia Militar, 
representaria, de fato, um enorme retrocesso para
 o país, que se distanciaria ainda mais de um Estado
 que zela pelos direitos e garantias individuais,
 caminhando na direção contrária dos países 
mais desenvolvidos. Deveras, há muitas falhas 
na nossa Segurança Pública e a sensação 
de insegurança na sociedade é cada vez maior. 
Contudo, para que tenhamos uma mudança nesse 
cenário, é preciso que o tema seja discutido de 
maneira séria, sem qualquer tipo de corporativismo.
 Mais do que isso. É preciso investimento nas
 instituições policiais, com melhores salários 
e condições de trabalho.
A título de inspiração, encerramos o trabalho 
com o conselho de Cioran:
Amemos nossas grandes alegrias e nossos grandes

desesperos, mas odiemos mortalmente a inércia, a

dúvida e a passividade; odiemos também tudo o que

faz diminuir o ardor apaixonado da alma, como

também tudo o que impeça nosso absurdo impulso na

direção do mundo. [24]

Francisco Sannini Neto é delegado de polícia, 
 mestrando em Direitos Difusos e Coletivos e 
pós-graduado com especialização em Direito Público. 
É professor da Graduação e da Pós-graduação da UNISAL/Lorena.

Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado
 de Polícia Civil do Paraná, especialista em 
Direito Penal e Processual Penal pela UGF e
 em Segurança Pública pela Uniesp. Também
 é professor convidado da Escola Nacional de 
Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia 
Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do 
Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná,
 e professor-coordenador do Curso CEI e da
 pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.
_________________
1 Música do curso de formação do Batalhão de 
Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do
 Rio de Janeiro, entoado em várias outras instituições
 militares.
2 STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos
 Britto, DJ 09/03/2007; STF, Tribunal Pleno, ADI 2427,
 Rel. Min. Eros Grau, DJ 30/08/2006; STF, Tribunal 
Pleno, ADI 3460, Rel. Min. Ayres Brito, DJ 31/08/2006.
3 STF, RE 401243, Rel. Min. Marco Aurelio, DP 18/10/2010.
4 STF, RMS 26.546, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 
DJ 09/03/2010.
5 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e
 processuais penais comentadas. São Paulo: 
Revista dos Tribunais, 2010, p. 827; 
TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo
 Penal. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1959, 
p. 406; SANTOS, Célio Jacinto dos. In: 
DEZAN, Sandro Lúcio; PEREIRA, Eliomar 
da Silva (Org.). Investigação criminal. Curitiba: 
Juruá, 2013, p. 64.
6 ROSA, Alexandre Morais da; KHALED 
JUNIOR, Salah H.. Polícia Militar não 
pode lavrar Termo Circunstanciado: cada um 
no seu quadrado. Justificando.com. 07/01/2014.
7 STF, Tribunal Pleno, ADI 2.427, Rel. Min. 
Eros Grau, DJ 30/08/2006; STF, Tribunal Pleno,
 ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007.
8 PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual 
esquemático de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 21.
9 Para um melhor estudo sobre o tema, 
indicamos o nosso SANNINI NETO, Francisco 
Sannini. Inquérito Policial e Prisões Provisórias. 
São Paulo: Ideias e Letras, 2014.
10VIANNA, Túlio. Desmilitarizar e unificar 
a polícia. Revista Fórum. jan. 2013. 
Disponível em: <
desmilitarizar-e-unificar-a-policia>
11 MOURÃO, Janne Calhau. Só nos resta a escolha 
de Sofia? In: Tortura, Brasília, Secretaria de Direitos 
Humanos da Presidência da República, 2010, p. 215-216; 
MANSO, Bruno Paes. O homem x. Uma reportagem 
sobre a alma do assassino em São Paulo. Rio de
 Janeiro: Record, 2005, p. 220-221/249.
12 SOUZA, Adilson Paes de. A educação em
 direitos humanos na Polícia Militar. 2012. 156 f. 
Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade 
de São Paulo, São Paulo, 2012.
13 Advertências à militarização da ideia de 
segurança pública. Editorial do Boletim do 
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 
n. 206, jan. 2010. Disponível em:
14 "Ciclo completo de Polícia": ou indevida 
investigação legal. Editorial do Boletim do
 Instituto Brasileiro de Ciências Criminais,
 n. 199, jun. 2009. Disponível em:
15 Relatório do Grupo de Trabalho sobre 
o Exame Periódico Universal (EPU) do Brasil, 
de 2012.
16 Caso Escher e Outros vs Brasil, Sentença de 
06/07/2009; Caso Castillo Petruzzi e Outros 
vs Perú, Sentença de 30/05/1999.
17 Anistia Internacional, Informe Anual 2014/15.
18 Comissão Nacional da Verdade. Relatório. 
Volume I. Parte V. Conclusões e recomendações. p. 971
19 Resolução 8/12, que busca, dentre outras 
coisas, coibir a investigação de crimes 
comuns pelo Serviço Reservado da Polícia Militar (P2).
20ALCADIPANI, Rafael. A farsa do debate do
 ciclo completo de polícia In: Estadão. Out. 2015. 

Disponível em:
21 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos 
direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do 
Advogado, 2009, p. 433 e ss.
22 STF, ADI 1494, Rel. Min. Celso de Mello, 
DJ 09/04/97.
23 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. 
Teoria Geral do Direito Policial. 2ª. ed. Coimbra:
 Almedina, 2009, p. 94 – 95.
24 CIORAN, Emil M. O Livro das Ilusões. 
Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: 
Rocco, 2014, p. 42.

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