segunda-feira, 20 de agosto de 2012

País pode ter primeiro santo de farda


País pode ter primeiro santo de farda



A irmã Célia Cadorin foi a principal responsável pela canonização dos dois únicos santos brasileiros, Santa Paulina e São Galvão. A primeira era irmã de caridade, como ela. O segundo, frei. Agora, irmã Célia tem outro candidato a santo. Desta vez, não vem da igreja, mas do quartel. É soldado da Polícia Militar.
José Barbosa de Andrade, da PM paulista, não fez milagres, mas morreu como mártir, em 6 de janeiro de 1999. Na tentativa de salvar uma mulher idosa, uma moradora de rua arrastada pelas águas do rio Tamanduateí, engrossadas pelas chuvas, morreu afogado.
A mulher salvou-se. O soldado José tinha 33 anos, como Cristo. Mulher e três filhos pequenos. Outras pessoas se preocuparam com a mulher no rio, mas José foi o único que desceu pela parede de concreto da margem, com pedaços de uma cordinha improvisada.
Chegou a agarrar o braço da mulher, mas, ao puxá-la, acabou caindo no rio. Então, o cordão de segurança de sua arma enroscou no lixo, e ele foi tragado para o fundo. A moradora de rua acabou salva ao passar sob uma ponte próxima.
Desde a infância, José foi pessoa simples, sem apego a bens materiais, pronta a ajudar quem precisasse. Assim é descrito pelo coronel da Polícia Militar Luiz Eduardo Pesce de Arruda, que está pesquisando a vida do soldado, para abastecer irmã Célia.
O irmão mais velho de José, o cabo do Corpo de Bombeiros Francisco Paz Neto, tem provas disso. “Um dia cheguei na casa dele e vi que não tinha compra (alimentos).” José já era casado, com três filhos pequenos, mas ainda não estava na PM. “Comprei uma cesta básica e levei para ele.”
Mais tarde, Francisco viu que a cesta tinha bem menos alimentos. “Ele ficou com um pouco e distribuiu o restante entre vizinhos necessitados. Eu disse que não achava justo, mas ele era assim mesmo, não adiantava reclamar.”
Espelho – Eram nove irmãos. Francisco, o primogênito, depois José. “Ele se espelhava em mim”, diz o bombeiro. Quando este entrou para a Polícia Militar, foi uma questão de tempo para o irmão seguir-lhe os passos.
Francisco só não imaginava que José chegaria à equipe das Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas – Rocam.
Mas este era um sonho que José confidenciava a Sandra, sua mulher (outro era tornar-se piloto dos helicópteros Águia, usados para resgate de pessoas e patrulhamento).
Resgatar pessoas ia bem com seu jeito. Francisco diz que o irmão era muito preocupado em ajudar as pessoas, muito calmo, educado. E feliz. Mas, por ora, santo “é uma palavra muito forte”, na avaliação de sua filha Amanda Estefani, 17 anos. “Ele era humano e, assim como temos nossos pecados, também tinha os erros dele. Mas eram erros pequenos, meu pai nunca prejudicou ninguém.”
Tratava muito bem os filhos, cumpria com seus deveres, “foi um bom pai”. “Tenho muita saudade dele”, completa Amanda. Se vier a ser canonizado, e tornar-se santo, Amanda e seus dois irmãos (Walace, 15 anos, e Wedesley, 24) acharão bem merecido.


Missa – Mas a felicidade maior talvez seja da mãe deles, Antonia. Católica fervorosa, é ministra da eucaristia na igreja próxima de sua casa, no Grajaú. Francisco diz que há vinte anos ela vai à igreja todos os dias. “Faz suas obrigações de manhã e à noite ajuda a missa.”
O coronel Arruda, que estuda a vida de José, é diretor da Escola Superior de Soldados de Pirituba. Foi lá que o candidato a santo se formou, em 1994. Há pouco tempo, o coronel resolveu melhorar o manual de ingresso na PM, distribuído aos alunos. Seriam incluídos relatos da vida de policiais militares que tiveram atuação destacada. O caso de José ganhou grande repercussão na época em que ocorreu. Arruda dedicou-se com muita atenção a ele.
Com o trabalho avançado, concluiu que estava ali não só um herói, mas alguém com qualidades de santo. Procurou irmã Célia, a quem conhecia, e relatou-lhe os fatos. A irmã se interessou. Achou que os elementos iniciais, e as circunstâncias da morte, ofereciam argumentação consistente.
Moto – De tudo o que apurou, o diretor concluiu que José só tinha dois defeitos. O primeiro, era ser mau motociclista. Vivia caindo da moto. “Ele era muito censurado pelos colegas, que o chamavam de ‘bração’. Mas, em vez de reagir, como seria normal, respondia apenas: ‘Me desculpem, vou tentar melhorar.’”
O outro defeito é que fumava. Mesmo com os conselhos dos amigos, não conseguia largar o cigarro. Arruda diz que ainda é muito cedo para saber se a causa da canonização de José vai prosperar. “Mas acho que há boas chances. Ele teve uma vida excepcional, diferente do homem comum”.
Nasceu no Rio de Janeiro, o segundo dos nove filhos de um vigilante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O pai, quando se aposentou, mudou-se com a família para São Paulo. Queria fugir da violência do Rio. Foram morar na casa de um parente, no Grajaú, na zona sul, perto da Represa de Guarapiranga. Os onze num quarto de alvenaria de quatro por quatro metros, sem água e luz.
José e Francisco guardavam carros em Santo Amaro, e entregavam o dinheiro ganho à mãe, como está nos estudos de Arruda. Com o tempo, José empregou-se num supermercado. De empacotador, chegou a chefe do setor de frios. Mas só ficou feliz ao entrar para a PM.
Seu corpo está no mausoléu da corporação, no Cemitério do Araçá. Na gravação, em sua campa, lê-se Cabo José Barbosa de Andrade. Foi promovido depois da morte.
A PM tem informações de que bilhetes são deixados na campa, por visitantes. Mas nenhum deles foi guardado. Em casos assim, os bilhetes contém pedidos de ajuda de pessoas com problemas. Ou agradecimentos “pela graça alcançada.” Como se faz com os santos.
Como postular que o Vaticano canonize o soldado José Barbosa de Andrade, se ele, em vida, não fez nenhum milagre? A irmã Célia Cadorin, da Congregação das Irmãzinhas de Maria Imaculada, especialista nessa prática, sabe a resposta de cor.
Martírio – O caso de José não envolve milagre, mas outro valor. “O importante, neste caso, é o martírio”, diz a irmã. “Salvar uma pessoa, dar a vida pelo irmão (seu próximo).” Em outros tempos, o martírio se dava pela fé a Jesus Cristo. Os imperadores matavam os seguidores de Cristo.
Hoje há muito menos perseguição, e o martírio é de quem dá a vida pelo seu próximo. “Olha-se muito a caridade.” Cita Santo Agostinho, para dizer: “O que importa no martírio é o porquê, a causa, o motivo pelo qual a pessoa dá a sua vida”, completa a religiosa.
No caso de José, essa atitude “era do coração dele”. “A pessoa já traz no coração o sentimento de ajudar o irmão.” A família do soldado herói é gente de fé e simples, “tem uma fé muito bonita”.
Irmã Célia acha que é prematuro falar da possibilidade do Vaticano beatificar e depois canonizar José. “Temos que comprovar e comprovar mais todos os fatos.” Vontade de que José vire santo não falta.
“Eu ficaria tão contente se fosse alcançado”, diz a irmã. “É uma causa diferente, um militar jovem. Isso mexe muito com todos nós.” Cita, por fim, um dos versículos que mais gosta. Está em Mateus, capítulo 25, versículo 40: “Tudo o que fizerdes ao menor (ao seu inferior) é a mim que o fazeis”.
O trâmite dos documentos, no caso de um policial militar, é explicado pelo tenente-coronel Nilson Carletti, da Escola Superior de Soldados, em Pirituba. A documentação (fatos e sua comprovação) é enviada para o cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Odilo Scherer. No momento, o processo de José está em análise por D.Odilo.
Em caso de aprovação, o cardeal irá encaminhar para o Vicariato Militar do Brasil, em Brasília. Aqui, um capelão militar a analisa e, se achar suficiente, a encaminha para o Vaticano.

Santo Antonio, o nosso herói.

No Brasil já houve o caso não de um policial militar que virou santo, mas de um santo que virou militar. Começou com a invasão dos corsários franceses comandados por Jean-François Duclerc, ao Rio de Janeiro, em 1710.
A situação estava feia, e o governador Francisco de Castro Morais pediu proteção a Santo Antonio. Os invasores acabaram vencidos de forma surpreendente, fato logo interpretado como milagre, atribuído a Santo Antonio.
Como recompensa, o governador nomeou o santo, representado por sua estátua, como capitão de Infantaria, com direito a soldo. O dinheiro ficava com o Convento de Santo Antonio.
Em 1810, nas comemorações de cem anos da expulsão dos franceses, D. João VI promoveu o santo a sargento-mor. Santo Antonio, por meio do convento onde estava a sua imagem, recebeu o soldo por dois séculos e um ano. Só em 1911 a verba foi suspensa.
Fonte: Diário de s.Paulo

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