segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

ESPÍRITO SANTO REVELADOR

  ESPÍRITO SANTO REVELADOR
 
 
A greve dos policiais militares no estado do Espírito Santo revelou nuances de uma mesma questão. A mais evidente refere aos efeitos do movimento paredista sobre a população. Todos viram pela TV o estado de medo que se instalou nas comunidades afetadas. Mas há outros efeitos menos visíveis. 

Discorrendo sobre o direito de greve, o jurista JOSÉ AFONSO DA SILVA, um dos mais prestigiados constitucionalistas brasileiros, retrata a greve (Curso de Direito Constitucional Positivo, 37ª edição, editora Malheiros, p.469) sob o seguinte enfoque: 

"É, no entanto, na possibilidade de instituir sindicatos autônomos e livres e no reconhecimento constitucional do direito de greve (artigos 8º e 9º da CF/88) que encontramos os dois instrumentos mais eficazes para a efetividade dos direitos sociais dos trabalhadores. (...) Vimos, também que o direito de greve é um direito-garantia, na medida em que ele não é uma vantagem, um bem, auferível em si pelos grevistas, mas um meio utilizado pelos trabalhadores para conseguir a efetivação de seus direitos e melhores condições de trabalho".  
 
A grandeza do direito de greve e de sindicalização é uma daquelas certezas insuscetível de gerar divergência. Trata-se de consenso claro acerca de sua relevância para a defesa e a garantia dos direitos sociais dos trabalhadores, urbanos ou rurais. Disto ninguém discorda. Logo, quando alguma categoria de trabalhadores é destituída desse direito-garantia é legítimo apontar que se lhe subtraiu mecanismo fundamental para a preservação de sua autoestimativa. 

Dito de outro modo: com isso a categoria profissional sujeita a tal restrição é rebaixada a uma espécie de 2ª classe de trabalhadores. Por óbvio, essa condição repercute diretamente sobre o grau de motivação exatamente daqueles (policiais militares) aos quais incumbe o ônus de, em nome da lei e da ordem, zelar pela vida e pelo patrimônio dos demais membros da sociedade, com enormes sacrifícios, inclusive da própria vida. Porém, isto não chega a ocupar a preocupação dos governantes, da mídia e da intelectualidade nacional.

Apesar da retórica pertinente à relevância social do trabalho executado pela PM, os seus integrantes não percebem na vida cotidiana atitudes do poder público, da mídia e da intelectualidade coerente com esse pseudo- reconhecimento.

Ilustra bem esse estado de coisas, matérias veiculadas pela televisão. De modo uniforme, todas exibiram diversas entrevistas sobre os fatos nas quais os entrevistados, em geral juristas,  verbalizaram de forma unânime o discurso de que se tratava de uma prática contrária à Constituição Brasileira, fazendo-o sob o ângulo exclusivo da vedação constitucional ao  direito de greve dos militares. 

Ou seja, falaram o que parece óbvio até mesmo para o leigo. Aliás, essa proibição já existia antes mesmo da atual Carta Constitucional. Significa dizer que mesmo os militares que redigiram o texto da Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº01 de 1969 já reconheciam o risco de permitir que a categoria pudesse livremente promover greve e se sindicalizar. 

Retornando à concepção do JOSÉ AFONSO DA SILVA sobre o direito de greve e de sindicalização,  tem-se que  a categoria de agentes públicos em baila ficou destituída dos dois principais instrumentos para a efetividade dos seus direitos sociais. 

Dentre os quais o da irredutibilidade do salário previsto no artigo 8º, VI da Constituição 'cidadã'. Irredutibilidade esta que se alcança mediante a garantia da revisão geral anual dos vencimentos também prevista na mesma Constituição 'cidadã' sempre que oficialmente se registram índices inflacionários.
Pesem tais circunstâncias, observa-se certo desdém na relação dos governantes com os integrantes das Polícias Militares do Brasil. Especialmente, por força do regime jurídico que as disciplinam. Isto é, sujeitos a duros regulamentos, associado ao Código Penal Militar e à cultura da disciplina e hierarquia inflexíveis, os detentores do Poder reputam que isso de per si seria suficiente para anular o sentimento de menos valia que lhes foi imposto pelo modelo de controle adotado.

Controle necessário e legítimo, mas que exige contrapartidas para se obter equilíbrio e, por via de consequência, mitigando a chance da erupção de movimentos de paralisação ante os efeitos de tamanho desprezo institucional.

No caso do Espírito Santo, a corrosão salarial propiciada pela inflação oficial dos últimos 03 anos sem qualquer revisão (antecedidos de 04 anos  sem aumento salarial) foi apresentada como a causa determinante do movimento liderado pelas famílias dos militares estaduais. E o foi segundo narrativas das próprias famílias daqueles servidores.

Indaga-se: será que não existiria um mecanismo eficaz para neutralizar adrede a deflagração de um movimento com tais consequências? 
A resposta é desenganadoramente afirmativa. Basta o constituinte de 1988 ter concebido algum mecanismo de compensação para a supressão dos dois mencionados instrumentos de efetivação dos direitos sociais dos militares o movimento não teria eclodido. 
Afinal, os membros da Assembleia Nacional Constituinte  declaravam a todo instante que a nova ordem constitucional visava o esforço de pacificação nacional a partir dos fatos vivenciados durante o regime militar antes vigente. 

Por meio desse discurso, apregoaram que não haveria retaliação nem sentimento de revanchismo contra os militares, isto é, aqueles que julgavam serem os responsáveis pelo período de exceção.

Nessa lógica, a Assembleia Nacional teria contribuído para a contenção preventiva desses episódios se tivesse, por exemplo, incorporado ao texto da Constituição que os militares seriam a única categoria a ter, obrigatoriamente, a revisão anual dos seus vencimentos se presente qualquer índice inflacionário. 

Essa medida exerceria a natural compensação pela grave supressão dos dois direitos trabalhistas fundamentais em tela: o de greve e o da sindicalização. O viés ideológico e ou ao a negligência com os efeitos dessa  grave supressão de direitos, desnuda o grau de desapreço do poder constituído com aqueles que diuturnamente se colocam na defesa da vida e do patrimônio da sociedade.

Criou-se, assim, uma bomba de efeito retardado. E mesmo com a grave crise instalada em 1977 com a greve da PM Mineira, com repercussão sobre outras unidades da Federação, ainda sim o poder público não cuidou de incluir tal mecanismo de proteção à categoria e à sociedade.

Nesse enfoque, a  visão dos juristas que  examinam a questão  pelo prisma exclusivo da proibição é sintomático, é revelador, do sentimento geral de desinteresse pelos efeitos gravosos sobre a categoria da perda do direito de greve e de sindicalização. 

Sem a necessária compensação, trata-se de uma verdadeira castração dos direitos sociais desses que são os que mais diretamente corporificam o Estado, à medida que em matéria salarial o poder executivo atua com duplo papel: o de estado-legislador (poder de iniciativa exclusiva de lei) e de estado-administrador, buscando sempre a redução dos seus custos para obter o maior grau possível de recursos para investimentos em obras eleitoralmente mais rentáveis do que melhorar a qualidade da prestação dos serviços públicos.

A revista Veja (edição nº2517, de 15/02/17) traz matéria sobre o evento contendo interessantes diagnósticos. Um deles é que a culpa pelos fatos não pode ser debitada unicamente sobre a corporação. Transcreve-se:                       (página 62).

"De quem, afinal, é a culpa pela semana sem lei de Vitória, que acuou as pessoas em casa, fez o comércio cerrar as portas, fechou escolas, esvaziou as ruas e matou inocentes?"

Na sequência, o articulista responde:

"A Polícia Militar, certamente, é a responsável direta pelo caos, ainda que sua grita salarial possa ter mérito. (...)MAS ESSA CONTA TEM QUE SER DIVIDIDA. A PRECEDER O CAOS  QUE TOMOU A CAPITAL CAPIXABA ESTÁ UMA SEQUÊNCIA DE GOVERNOS QUE SE MANTIVERAM INDIFERENTES ÀS DEMANDAS DE UMA CATEGORIA QUE, AO CONTÁRIO DA ELITE DO FUNCIONALISMO PÚBLICO, MIMADA COM GORDOS SALÁRIOS E BENESSES SOB ENCOMENDA, ARRISCA A VIDA E VIVE DE PÃO E ÁGUA".

Como órgão independente, a análise de Veja não pode ser subestimada. Provavelmente a indiferença dos governantes identificada no artigo perdure, lamentavelmente.  E no futuro episódios do gênero se repitam em razão direta do descaso e menoscabo governamental. 

Segmentos da chamada 'elite do funcionalismo', segundo definido no artigo de Veja, obtém 'gordos salários e benesses' mais em função do seu poder político (leia-se: negociação graças ao direito de greve e de sindicalização, ou de integrarem determinados estratos do serviço público) do que em razão de sua dedicação à causa coletiva. 

A supressão dos dois mais importantes instrumentos de defesa dos direitos sociais dos policiais militares (o direito de greve e de sindicalização) sem algum mecanismo de proteção salarial, rebaixou os policiais militares à condição de servidores de 2ª Classe. Esta é a percepção daqueles que integram tais corporações país afora. 

E mais: além dessa impropriedade jurídica, percebem tais servidores que no plano estadual, mais especificamente no âmbito do poder executivo, os governantes não realizam nenhum esforço perene e concreto para lhes assegurar tratamento compatível com a natureza do serviço que prestam, agravando ainda mais o sentimento de menos valia. 

Recentemente (em 2016), o governo paulista, por exemplo, reajustou exclusivamente o salário de integrantes do Tribunal de Contas do Estado, pasme, a título de revisão geral anual. Isto é, recorreu a mandamento constitucional aplicável à generalidade dos servidores para apenas impedir a corrosão salarial de uma categoria sobre a qual tem particular interesse. 
Isto exacerba a não mais poder o sentimento de baixa autoestima do conjunto dos policiais militares. E ao constatar que não fossem as esposas de seus pares de outro estado a categoria continuaria impotente, inerte, diante da desfaçatez do poder público, isto potencializa a crença de abandono. 

Nessa perspectiva, soa como verdadeiro vaticínio o último parágrafo do mencionado artigo da revista Veja, à página 69.
 
"Mas ninguém aprendeu a lição de que forças de segurança não podem ser deixadas ao léu, sob pena de que se vivam horas de terror e caos".
 
 
                              Cel Res. PMESP EDSON G. GÜIDO DE MORAES

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