quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
Defeitos do projeto do Código Penal comprometem sua viabilidade
Tramita há dois anos o Projeto de Lei do Senado (PLS) 236/12, de autoria
do senador José Sarney, voltado a instituir um novo Código Penal (CP)[1].
A má qualidade da reforma não impede que ela, à sua passada trôpega,
prossiga, especialmente ante o espírito reformista que ronda a atual
conjuntura — vide a recente reforma do Código de Processo Civil e o
discurso de posse da Presidente da República[2].
Em dezembro do ano passado, a Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania (CCJ) do Senado apresentou o seu relatório final. O texto
revisado seguiu para votação naquela casa legislativa no dia 17 de
dezembro de 2014, tudo ao apagar das luzes da sessão legislativa e sem
alarde. Pela colaboração de contingências, ocorreu pedido de vista, o
que nos oferece a chance de questionar a viabilidade dessa reforma.
A afirmação de que o projeto não tem salvação e não merece qualquer esforço de aperfeiçoamento não é nova[3].
No entanto, passados dois anos de trabalho, aquela afirmação talvez
contrarie o senso comum: simplesmente engavetar o projeto não seria
desperdício do tempo e esforço já despendidos? O próprio senso comum,
contudo, acomoda a intuição de que, em certas hipóteses, a tentativa de
restaurar ou aproveitar algo visceralmente defeituoso é menos proveitosa
do que recomeçar do zero — pense-se na perda total de veículos
acidentados. Assim, a pergunta a ser respondida é: quais defeitos
ostenta o PLS 236/2012 que, de tão graves, comprometem-lhe inteiramente a
viabilidade?
I. Os defeitos da última versão do PLS 236/12
É possível discorrer indefinidamente sobre os defeitos desse projeto. O
mais visível é o desleixo com que foi elaborado — defeito perceptível em
cada linha do PLS 236/12, apesar das duas revisões que sofreu. O
produto final que deve seguir para a votação apresenta graves defeitos
de revisão técnica (1.); é composto por uma Parte Geral altamente
defeituosa (2.); é fruto de uma transposição acrítica das leis
extravagantes (3.) e, por fim, não obedece a qualquer técnica
legislativa uniforme (4.).
1. Revisão técnica deficitária
O que se vê no texto final são incoerências internas gravíssimas (o
crime de incêndio em matas e florestas, por exemplo, é previsto duas
vezes, e com penas diferentes: artigos 196, parágrafo 1º, inciso V, e
415), mas sobretudo cominação de penas desproporcionais, tanto para mais
como para menos: a peita do artigo 304 é mais severamente punida do que
a falsa perícia do artigo 303, embora o perito preste um compromisso
pelo qual contrai um dever especial que não onera quem o suborna; a
submissão de doente mental à prostituição (artigo 195) sofre apenas
metade da pena do próprio abuso sexual desse mesmo doente mental (artigo
192); a esterilização forçada (artigo 128), prevista erradamente como
crime contra a vida, sofre pena menor do que as lesões corporais
qualificadas pela perda permanente de função orgânica (artigo 129,
parágrafo 3º, inciso I), como se a função reprodutiva fosse menos
importante que as demais. A previsão do novo crime de transgenerização
forçada, que é comum e não hediondo (artigo 41), inclui a punição de
toda pessoa que toma conhecimento do fato e não o denuncia (artigo 191,
parágrafo 4º) — punição verdadeiramente extraordinária, que a
Constituição havia reservado para os crimes hediondos (artigo 5º, inciso
XLIII, de interpretação discutível) e que sequer estes próprios, no
projeto, recebem. O favorecimento pessoal no terrorismo (artigo 246)
sofre uma antecipação de punibilidade (“dar guarida a pessoa […] que
esteja por praticar crime de terrorismo”) que não se previu nem para o
próprio terrorismo (artigo 245). Ocorreu, ademais, o nivelamento de
condutas fundamentalmente diversas: o crime de omissão de socorro
(artigo 137), que é passível de cometimento por qualquer pessoa, recebeu
a pena de dois a quatro anos — a mesma do abandono de incapaz (artigo
136), que é delito exclusivo de quem possui um dever prévio de cuidado e
é obviamente mais grave; a pena mínima da calúnia (artigo 141) e da
difamação (artigo 142) é a mesma, embora na primeira o fato imputado,
mais do que desonroso, seja criminoso; a pena mínima das lesões
corporais seguidas de morte é idêntica à das lesões graves de 3º grau
(artigo 129, parágrafos 4º e 3º, respectivamente), conquanto nestas
últimas a vítima sobreviva.
Os deslizes técnicos parecem infinitos: afirma-se que a pena de multa
será aplicável a todo e qualquer crime (artigo 65), mas vários crimes
têm previsão expressa da aplicação cumulativa ou alternativa de multa
(por exemplo os artigos 155 e 203, parágrafo 1º; sobre os crimes de
tóxicos ver adiante no texto). Ora se diz que as penas alternativas
serão aplicadas no número de uma (artigo 51) ou duas (artigo 59,
parágrafo 2º), ora que podem ser mais de duas (artigo 58, parágrafo 2º).
O projeto admite a retratação da injúria (artigo 147), embora nesta não
haja uma afirmação ou imputação de fato determinado, mas o insulto puro
e simples, e a ideia de retratação seja impertinente. O texto
projetado, não satisfeito em equiparar a energia elétrica a coisa móvel,
como faz o CP vigente (o que tem uma explicação histórica[4]),
estende a equiparação à água ou gás canalizados, que óbvia e
indiscutivelmente são coisas móveis — algo como equiparar-se um bebê ao
conceito de pessoa; contém disposições inconciliáveis sobre aborto, que
ora parecem incluir em sua definição a morte do feto (artigo 126,
parágrafo 1º), ora parecem dispensá-la (artigo 129, parágrafo 2º, inciso
VI, e parágrafo 3º, inciso II); chama o “mandato criminal” de “mandado”
(artigo 38); prevê norma sobre a fixação de alimentos em favor da
vítima (artigo 76) de natureza puramente processual que sequer deveria
constar de um projeto de CP, e mesmo nele se encontra fora de lugar
(pois concerne aos efeitos da condenação, e não à determinação da pena);
o crime de exploração do trabalho infanto-juvenil tem um efeito da
condenação oponível ao Poder Público (artigo 494, parágrafo 1º, inciso
I: dever do Estado de indenizar a vítima) de impossível efetivação
processual — a menos que se introduza no Código de Processo Penal alguma
forma de intervenção de terceiros; trata a proibição da revista íntima
do visitante como um “direito do preso” (artigo 53, parágrafo 1º). O
crime de rixa, rebatizado de confronto generalizado, tem forma
qualificada “se o confronto for entre grupos ou facções organizadas” —
uma contradição em termos (artigo 135, parágrafo único). Por fim, há
passagens simplesmente incompreensíveis, como o crime de “ingressar a
entrada indevida (?) de aparelho telefônico em estabelecimento
prisional” do artigo 311.
Não são filigranas: cada palavra errada da lei penal pode significar
meses ou anos de encarceramento. Tais erros, quando muito, são
aceitáveis num primeiro rascunho, mas não após a revisão final. O
reformador, contudo, simplesmente ignora a diferença entre projeto,
esboço e rascunho.
2. Equívocos graves no coração do Código Penal, a Parte Geral
Na Parte Geral, os defeitos já foram referidos em outros estudos mais detidos, e a versão da CCJ só fez mantê-los.
Assim, se o atual CP contém uma definição inútil de crime consumado
(atual artigo 14, inciso I), no projeto ela vem acompanhada de uma
definição muito ruim de tentativa (artigo 21). No concurso de pessoas, o
projeto, sem abandonar o texto dos dispositivos vigentes (artigo 29 e
seguintes), insere uma avalanche de palavras inúteis que atingem
exatamente os mesmos resultados práticos da lei atual (artigos 36 e
seguintes). O tratamento da responsabilidade penal das pessoas jurídicas
no PLS é confuso: no rol de penas para pessoas naturais (artigos 42 e
58), a expressão “pena de restrição de direitos” engloba tudo que não
seja prisão ou multa, inclusive prestação de serviços à comunidade; já
na relação das penas próprias das pessoas jurídicas, a expressão “pena
de restrição de direitos” tem outro significado, pois é posta ao lado da
prestação de serviços à comunidade (artigo 71), a qual, por sua vez,
inclui para as pessoas jurídicas penas de conteúdo econômico que nada
têm de “prestação de serviços”, como “custeio” e “contribuições” (artigo
73, incisos I e IV). Utilizando mal o CP vigente como gabarito, o
projeto segue mencionando a ação penal pública condicionada à requisição
do Ministro da Justiça (artigo 97, parágrafo 1º), embora a Parte
Especial do PLS 236/12 não preveja um só crime cuja persecução esteja
sujeita a tal condição. Há ainda erros que, se é verdade que existem no
direito vigente, foram mantidos ou radicalizados no PLS 236/12, como a
previsão de espécie de “prisão por dívida” (artigo 44, parágrafos 5º e
47, parágrafo único, que universalizam a discutível regra do artigo 33,
parágrafo 4º, do CP vigente) que, além de ilegítima, atinge mais o
desvalido, menos o opulento, e a pluralidade de penas de conteúdo
econômico (multa, prestação pecuniária, perda de bens e valores) criada
pelas reformas do CP de 1984 e 1998, sem razão suficiente que a
justifique.
Tais defeitos não se situam em áreas marginais, mas no coração do
Direito Penal, algo comparável ao engenheiro incapaz de realizar um
cálculo integral.
3. Transposição acrítica das leis extravagantes para o interior do Código
Poder-se-ia mencionar a vantagem de que, ao menos, todas as
incriminações constam de um só documento. O que houve, contudo, foi uma
transposição acrítica daquelas leis extravagantes, que vagavam errantes
pelo mundo das leis especiais e que agora são alçadas ao plano nobre do
Código.
Os exemplos pululam: tal foi o caso dos crimes relativos a loteamentos
(atual Lei 6.766/79) e contra as relações de consumo (artigo 7º e
seguintes da Lei 8.137/90) . O fato de que seria preciso revisar tais
incriminações para integrá-las, evitando repetições e superposições, não
foi sequer cogitado pelo reformista, o qual, no relatório da CCJ,
confessou haver promovido poucas alterações nos dois grupos de crimes
supracitados justamente porque se tratava de simples “compilação” (p.
86, relatório da CCJ). No caso das leis antitóxicos (11.343/06), de
tortura (9.455/97) e de racismo (7.716/89), a incorporação pura e
simples de seus textos ao projeto, sem a necessária revisão técnica
(item 1 acima) produziu resultados aberrantes. Como se sabe, o CP
vigente prevê os limites mínimos e máximos da pena de multa na Parte
Geral; já a lei antitóxicos, conjugando o sistema dos dias-multa com o
critério original do CP (antes da reforma de 1984) de prever multas
diferentes para cada crime, comina uma multa específica a cada infração
nela prevista. O projeto, por sua vez, simplesmente imita cada uma das
referidas leis, mantendo para a generalidade dos crimes as regras da
fixação da multa da Parte Geral, mas adotando para os crimes de tóxicos
penas de multa específicas (artigos 220 e 221). Não houve, igualmente,
qualquer reflexão acerca do posicionamento das diversas matérias: o
delito de guardar lixo hospitalar (artigo 134), por exemplo, figura
entre os crimes contra a pessoa, embora seja claramente um crime de
perigo comum, pois não atinge uma vítima determinada.
Desprovido da “habilidade de um mosaísta” de Vicente Piragibe[5], o reformador atual produziu um desastroso pasticho.
4. Má técnica legislativa
Outra consequência natural do propósito uniformizador da reforma é a
adoção de uma técnica legislativa minimamente uniforme, que faça do
Código mais do que um amontoado de dispositivos. As incriminações do CP,
como se sabe, principiam com o verbo típico: matar alguém, subtrair
coisa alheia móvel. Na legislação extravagante tal critério nem sempre é
adotado: as atuais leis de tortura e de racismo, por exemplo,
introduzem incriminações com o estribilho “constitui crime”. O
projetista não teve o menor pudor em simplesmente reproduzir aquelas
vigentes definições, cujo estilo é manifestamente incompatível com o
esforço consolidador.
5. O diagnóstico
O relatório da CCJ é diagnóstico definitivo sobre o despreparo geral do
reformador, que ostenta o seu desleixo como se portasse medalha. Sequer a
pergunta elementar, sobre quais seriam os defeitos técnicos do CP
atual, foi formulada, com o que qualquer alteração se transforma em
diletante exercício estilístico, capaz de exultar apenas alguns ávidos
manualistas, venais mais do que sérios. Do ponto de vista técnico, o CP
atual é infinitamente superior ao projeto ora apresentado.
Atestar o desleixo do reformador não significa apenas discordar
pontualmente das opções escolhidas, mas diagnosticar a incapacidade para
sequer apresentar um documento que mereça o nome de projeto de CP.
Poder-se-ia generosamente relembrar nosso escriba soberano: “Quem tem
outros merecimentos, pode claudicar uma vez ou duas”[6]
— mas simplesmente não há merecimentos dignos de nota. Eventuais e
pontuais acertos existentes, como a supressão do autoritário crime de
desacato, permanecem infinitesimais diante do mar de equívocos.
II. Há salvação para o PLS 236/2012?
A resposta depende do que se entende por salvação. Se o leitor considera
que: a) reunir a legislação que o projeto se propõe a substituir; b)
cotejá-la com o texto apresentado; c) identificar inúmeras
inconsistências e resolvê-las; d) ordenar as infrações segundo suas
penas e ajustar estas últimas de modo a garantir que aos crimes mais
graves correspondem punições mais severas; e) localizar na literatura
escrita a propósito do Código atual ao longo de setenta anos as
principais críticas e verificar se elas foram resolvidas no projeto,
dando solução adequada às que foram ignoradas; f) retificar a redação
dos incontáveis dispositivos mal enunciados; g) posicionar melhor as
matérias —, enfim, se o leitor, já de posse do fôlego, considera que
tudo isso é salvar o projeto, então talvez este tenha salvação. De nossa
parte, cremos que isso é escrever um novo projeto, e que é mais seguro e
produtivo fazê-lo a partir do zero. Basta o dado de que todos os erros
técnicos mencionados não foram sequer percebidos em dois anos de
trabalhos revisionais. Um projeto de lei obscuro e confuso não se
embarga; arquiva-se. Não há salvação para o PLS 236/12.
O pianista Artur Schnabel escreveu que as sonatas de Beethoven são melhores do que é possível executá-las[7].
O PLS 236/12, por sua vez, é pior do que é possível descrevê-lo.
Estamos diante do pior projeto de Código Penal de nossa história
republicana. A vingar, virá ao mundo clamando por reforma: a marca
registrada de um fracasso legislativo.
[1] Informações acessíveis emhttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404 .
[2] Ver a matéria do Conjur: http://www.conjur.com.br/2015-jan-01/discurso-posse-dilma-mudancas-codigo-penal
Deus nos acuda desse legislativo que elabora essas leis.
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